O blog


Retomemos funções estruturais da tragediografia grega. Corifeu é a voz que do Coro se destaca unitariamente. O Corifeu personaliza o Coro. É invenção corística que assume, quase à altura de um ator, a sindicância que o Coro, no teatro, infunde, em extensão ao pensamento do Estado (Atenas, por exemplo, considerando Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, os quatro grandes poetas trágicos helênicos que conhecemos). Função semelhante se quer com o blog. Nesse caso, o blog é um Corifeu. Quem nele escreve, escreve como um Corifeu. Mas há um Coro que ecoa no Corifeu.

A voz do Coro se interpõe à voz das personagens e carrega um conteúdo que gera tensões. Digamos que o Coro evoque o que deve estar evocando a plateia (os cidadãos helenos que iam ao teatro). A plateia certamente evoca o que evoca a polis (o conjunto, por exemplo, dos cidadãos atenienses). Nesse sentido, o Coro precisa fazer representação ao pensamento da polis, e o pensamento da polis é, em geral, calcado em ordem - política, moral, ética, jurídica, filosófica, religiosa. 

Exemplo: um Coro problematiza a ação do herói, ou de qualquer outro personagem, tenha ela acontecido ou estando prestes a acontecer. Podemos observar essa questão em Édipo Rei, de Sófocles (talvez a mais conhecida tragédia grega, que Aristóteles considerou de excelência modelar). A certa altura, diz o Coro a Édipo: "Cede a seu pedido, mostra boa vontade, recupera teu sangue frio, eu te imploro, senhor". Quando o Coro solicita que Édipo ceda "a seu pedido", está se referindo ao pedido de Jocasta, sua esposa, para que o tirano-rei de Tebas não sentencie Creonte (Édipo acreditava que Creonte, seu "cunhado", era o idealizador de um plano para usurpar o trono real). Édipo pede ao Coro, então, formado for anciães tebanos, conselho sobre como proceder. Obtém, em resposta: "Ele é teu parente; um julgamento o protege: não lhe faças a afronta de acusá-lo por uma simples suspeita" (tradução de Paulo Neves, grifo nosso). Cunhado é parente? Não num sentido genealógico, certamente. Ideológico? Talvez. "Ele é teu parente"! O Coro antevê o que a plateia já sabe e prediz o que o Estado prescreve: Creonte é tio; Jocasta é mãe; o falecido Laio era pai, etc. A plateia sabe que Édipo desposou, involuntariamente, sua própria mãe. Só ele que não sabe. A plateia sabe que Creonte é, de fato, parente, num grau muito mais significativo do que poderia ser o de "cunhado". A tensão produzida pelo Coro no herói Édipo é ainda mais densa em meio à plateia, que conhece as narrativas míticas tebaidas desde criança. A plateia quer saber como será o desfecho na peça que está assistindo. E é aí que a criatividade de Sófocles entrará em cena (entrou em cena), de tal modo que um pensador como Aristóteles julgou-a perfeita. Um julgamento protege Creonte? Nova tensão: é princípio irrevogável entre os helênicos a não insurgência contra cidadãos consanguíneos. Assim, o conselho que o Coro dá a Édipo é um preceito jurídico que, sob hipótese alguma, pode ser infringido. Como soberano de Tebas, Édipo não pode, nem em sonho, subverter esse princípio. Ele precisa ser o maior exemplo de conduta. A tensão é grande na mente conturbada de Édipo: como Creonte pode estar protegido por juramento tradicional sagrado se ele não é, de fato, um parente? E a tensão é maior ainda na plateia: Édipo já violou tal preceito sagrado, quando assassinou, sem saber, seu próprio pai.

O Coro é a maneira de representar o pensamento grego imbuído politicamente, ou seja, o pensamento do mundo grego, ou como a sociedade grega, organizada sob determinada ótica e/ou política de ordem moral, ética, cultural e filosófica, reage diante do que está acontecendo ou está para acontecer no palco. Nosso palco, neste blog, é o mundo. Nossa ordem não é a grega, especificamente, mas a nossa mesmo, que desenvolvemos enquanto vivemos. Existimos multívocamente no mundo e nossa ordem está através das ações que ordenamos pelos momentos multívocos do mundo. As palavras significam essas ações - ou estão muito próximas de significá-las.

Antes de o Coro ser estrutura tragediógrafa, era parte dos festejos dionísiacos. Não era propriamente Coro, mas cortejo: grupamentos de cantores e músicos que entoavam hinos em honra ao deus Dioniso. Em geral, um cantor dirigia os cânticos, como se fosse um Corifeu, seguido pelos embevecidos cultores do deus do êxtase, tal como um Coro. Cantavam, dançavam e tocavam com a alegria e a exultação de quem deixa a si em festa extática. Não havia representação de um mundo concentricamente ordenado: só o êxtase daquele que se maravilha. Essa era sua ordem. Na altura do sexto século, Pisístrato, o Tirano, estrategicamente incorpora a tradição dionisíaca à polis ateniense. Ao mesmo tempo em que "ordena" seus ânimos desregrados, agrega princípios éticos e morais às celebrações, laicizando-as. Nascem daí as Grandes Dionísiacas. Nasce daí formas que constituirão o teatro grego.

Aqui, neste Corifeu, valerão os ritmos e as melodias do que pensadores como Mircea Eliade chamaram l´homme total. Talvez fosse com esse espírito que o ser cantava, há muito, muito tempo, quando a voz encarnava, atemporal, sentidos divinos. Nesse tempo, era muito bom ouvir. Era preciso ouvir.



Texto escrito por Fabiano Felten.