terça-feira, 21 de junho de 2011

Heidegger e o nazismo

Começo da madrugada de ontem, interrompi uma leitura quando da entrevista do professor Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Programa do Jô. O tema da entrevista: as relações entre Estado, sujeito e liberdade, de um ponto de vista político-filosófico. Rosenfield defende que o Estado atue de maneira legal somente até um ponto em que inicie a livre consciência do indivíduo. Nesse sentido, creio que sua posição é largamente antiplatônica. Em síntese, seu pensamento é ético: o que é o bem, ou o que pode ser o bem, em última instância, é juízo do sujeito, e o Estado não deve impingir um bem que eticamente pode ser alheio ou pode limitar a liberdade de consciência, que é ilimitada. Jô Soares não deu ao professor tempo suficiente para esclarecer que a posição não se quer solidária à anarquia. Rosenfield apenas conseguiu dizer que a questão não é legal, mas ética. Evidente que a lei irá punir a má ética, conforme necessário. O problema levantado é quanto aos limites de uma única ética, pré-determinada e, com rigor, determinada. O tema tem fôlego de debate, mas não é sobre ele que decidi, aqui, me deter.

Decidi escrever sobre a tão reiterada discussão da relação entre o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) e o nazismo - discussão que acabou preenchendo uma parte da entrevista, quando Jô inquiriu o porquê de um homem tão inteligente ter defendido até a morte uma posição a favor do nazismo. Honestamente, sempre pensei nessa história como um boato - não num sentido de falsidade, mas de insignificância, como mais ou menos foi quando Galileu negou suas teorias para não ser condenado à fogueira. Ontem, entretanto, ao ver que a questão perturbou Rosenfield durante uma parte de sua vida, retomei o "boato" de maneira reflexiva. Convenhamos: para quem conhece pelo menos um pouco da literatura de Heidegger, o que interessa de seu partidarismo nazista? O problema, todavia, é justamente aquele que Jô evidenciou: por que um homem tão inteligente filiou-se ao nazismo? Não consigo encarar a questão como um enigma que prescinde de explicação. Rosenfield, que provavelmente pensa o mesmo que eu, limitou-se a dizer que o juízo do Ser, num momento obscuro como foi o momento da Alemanha na primeira metade do século passado, tem difícil avaliação alheia, porque cheio de sutilezas que só o próprio Ser pode conhecer. Por isso, retomo a interrogação: por que tem que haver um porquê? Porque a obra filosófica de Heidegger impressiona pela sagacidade intelectual? Porque um homem com tal lucidez não pode ter se engajado a algo tão nefando quanto o nazismo? Porque a beleza da obra contrasta com o que Heidegger de fato vivia?

Muitos leitores parecem ao mesmo tempo amar e odiar Heidegger. Amam sua obra, odeiam sua pessoa. De fato, é lamentável certas atitudes que Heidegger teve, em vida. Hitler subiu ao poder em 1933. No mesmo ano, o filósofo filiou-se ao partido e, talvez por isso, tornou-se reitor da Universidade de Friburgo. Durante seu mandato, expediu várias "normas" simpáticas à ideologia hitleriana: proibiu Husserl, a quem, num primeiro momento, seguiu, que era judeu, de utilizar a biblioteca da universidade, e negou ajuda financeira a estudantes não arianos (marxistas, judeus, etc.). O mandato não durou muito: renunciou em 1934, e seu desligamento do Partido Nazista ocorreu em 1945. Passou o resto de sua vida sendo questionado pelo passado, e as criticas só aumentaram, porque Heidegger jamais se retratou do que fez, mantendo o que viveu com a mesma obscuridade de seu mais conhecido trabalho, O ser e o tempo, publicado bem antes de toda a balbúrdia nazista, em 1927.

É justamente no tempo que está este Heidegger malvisto. O outro está no ser. Com qual deles ficamos, em última instância?


3 comentários:

  1. Eu ficaria com o tempo, apesar de não conhecer o Ser. Como estudante de história, penso que Heidegger, ao defender o nazismo ou se beneficiar dele, se torna, para o contexto, um qualquer, alguém que, apesar de inteligência e cultura descomunais, foi capaz de fazer parte e compactuar com uma dos capítulos mais horrendos, sangrentos e absurdos da história humana. Assim, ele é também responsável, e não pode ser desculpado, nem sua anuência com o nazismo relativizada. Creio ser uma irresponsabilidade dizer que era o contexto, os valores da época, etc., mas milhares de intelectuais fugiram da Alemanha, mas o Heidegger ficou. Mas é uma questão que está sempre posta: como pode Heidegger, e a Alemanha, produzirem e dar suporte e continuidade ao nazismo, à guerra e ao Holocausto?
    Abraço Fabiano

    Rafael Petry Trapp

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  2. Obrigado, Rafael. Também acho que, tomado o contexto, Heidegger é como qualquer um que fez parte daquela barbárie. Tomada a obra filosófica de Heidegger, fica a ótima pergunta que encerrou seu comentário.
    Acho que vai ficar para sempre posta.

    Quando leio Heidegger, não consigo pensar em um nazista. Se penso, começo a ficar inquieto. Escolhi não pensar, porque, como o próprio Heidegger dizia, não importa a identidade do pensamento - ele pode ser uma janela, e isso é o suficiente quando se quer amplidão.

    Abração. Saudades.

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  3. Ainda ontem comentava com um amigo sobre essa entrevista. Como pode um homem que se diz tão inteligente não ser capaz de discernir os fatos dos tempos com sua pessoas, assim não dá Jô! Não se pode olhar para o passado com a perspectiva e os valores do presente. Ou ele acha que um cidadão, por exemplo, que vivia na Idade Média, dizia: Ah, estou na Idade Média... Ele estavam eram em sua contemporanedade, mais tarde é que o epíteto foi dado... Cuidado, Jõ, o nazismo não foi construído por ignorantes!!!
    Gostei da reflexão, Fabiano! Abraço amigão!!!

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