sexta-feira, 22 de julho de 2011

O paraíso da politicagem brasileira

O que significa um Estado? O que representa um Estado? Como é um Estado? O que é um Estado, enfim? A primeira civilização que especulou sobre esse tema, tão complexo, e o desenvolveu em amplitude notadamente política, foi a dos helênicos, há quase três milênios atrás. Seus Estados, entretanto, tomados a partir da constituição das diversas cidades que formavam o que conhecemos como Hélade, foram em grande medida atribulados, sem exceções, e não duraram muito tempo. Um dos Estados helênicos no ocidente que gozou de uma espécie de fama paradisíaca foi o Estado de Atenas, e isso num período específico: o quinto século antes da era cristã. Uma das razões que ostentaram nesse Estado uma fulgurância administrativa modelar foram as obras públicas proeminentes que um político por nome Péricles teria idealizado, com gastos de dinheiro enormes, e isso também não durou muito tempo - e houve, no contexto político dessas obras, inúmeras atribulações. Em suma, Atenas ganhou fama de ter sido um exemplo de cidadania na Antiguidade Clássica sobretudo porque vozes publicamente notórias, como a de Péricles, defendiam ideais democráticos. Esses ideais teriam começado a se consolidar politicamente mais ou menos um século antes, com a participação de um influente magistrado chamado Sólon, embora saibamos que suas raízes ideológicas já aparecem desde Homero. Todavia, nada disso ocorreu sem inúmeros conflitos e debates oposicionistas. Para piorar, logo viria a derrota para Esparta na Guerra do Peloponeso, que Aristófanes brilhantemente transformou em comédia, e, no quarto século, a consolidação da queda dos Estados helênicos, inclusive da exemplar Atenas, com o triunfo bélico da desprezada Macedônia, a partir da Batalha da Queroneia. O que sabemos sobre esse Estado chamado Atenas deve-se em parte pela sobrevivência de uma obra de Aristóteles intitulada A constituição de Atenas. Aliás, o filósofo teria escrito várias Constituições, mas a única que sobreviveu aos quase três milênios que nos separam das civilizações helênicas foi a da "cidade de Sólon", como referencia Platão, em A República.


Recorri a Atenas para mostrar que a dificuldade de se constituir – ou de definir – um Estado não é somente contemporânea, e que os antigos, nesses termos, não viviam em verdadeiros paraísos, como aquele em que existiram os "homens da raça de ouro", que Hesíodo transformara, no oitavo século, em belo poema. Entretanto, se tomarmos como exemplo de um Estado contemporâneo o brasileiro, as atribulações são muito mais grosseiras e infames que as dos helênicos. Contudo, essa não é uma comparação muito legítima, porque as informações historiográficas que temos deles, e que os tornam, assim, menos infames e grosseiros que nós, podem ser não mais que literárias - embora o caráter filosófico de muitas delas imponha alguma autorização mais precisa que gloriosamente eloquente. Encontrar uma precisão factual na discursividade, seja ela literária, filosófica ou historiográfica, é, aliás, um desafio intelectual - diríamos, até, que seja uma arte intelectual.

Esse preâmbulo ocorreu depois que assisti, na noite do dia 21 de julho de 2011, a uma reportagem veiculada pelo Jornal Nacional, em que o prefeito Waldemir Caetano de Souza, da cidade paulista de Martinópolis, proibiu seus funcionários de falarem publicamente sobre o já longo atraso de seus salários. O argumento para explicar esse atraso é um lugar comum no Estado brasileiro: o orçamento municipal é pequeno demais para cumprir com os necessários gastos fixos do poder público, entre eles os salários do funcionalismo. O argumento para explicar a proibição de manifestações críticas, entretanto, é um absurdo, ainda mais porque promulgada pelo prefeito, em nota oficial: não expor o problema para que segmentos midiáticos o desconhecessem, segredando, então, um caso “particular” de administração criticável. Seria um tipo de privatização de algo público, ou, em termos mais “populares”, um caso de safadeza querendo ser mantida em sigilo? Pois o tiro saiu pela culatra, e ironicamente obrigou o próprio mentor dessa “improcedência administrativa” a tornar o caso público – e em nível desgostosamente nacional: o prefeito. O Jornal Nacional esteve lá e noticiou a infâmia para o país inteiro. O país inteiro, então, passou a ter conhecimento desses "fatos". E pior: terminou sendo revelada, pelo próprio prefeito, a inacreditável "solução" encontrada para o "problema", essa sim ainda mais digna de uma peça de Aristófanes. Ficou acertado, num acerto autoritário entre três ou quatro bambambans da prefeitura, claro, que o salário seria pago seguindo uma ordem alfabética, porém com início inverso, ou seja, das últimas para as primeiras letras dos nomes iniciais de cada funcionário. Entretanto, o astuto prefeito de Martinópolis tem a inicial de seu nome na primeiríssima letra da lista: "W". Em outras palavras, começaria por ele, com seu pequeno salário de "mais de 11 mil reais", o maior e “mais importante” do funcionalismo público daquele município, o pagamento dos salários. Os "demais", entre eles os que têm seu nome iniciado por "A", permaneceriam chupando o dedo e tendo que enfiar suas contas "naquele lugar" até ter seu justo salário de servidor "comportado" pelo orçamento “alfabético" oficializado em Martinópolis.

Até hoje não foram encontradas entre os helênicos notícias de uma infâmia tal como essa. O mais grave é que esse é apenas um exemplo do que acontece pelos cantos de nosso país. Outros absurdos têm tomado considerável espaço nas mídias nacionais. O que se pode resumir, no geral, e isso não é nenhuma novidade, é que o Estado brasileiro transformou-se em um paraíso de ganhos fáceis, tanto de dinheiro quanto de influência. Em outras palavras, tornou-se uma abertura muito simples e convidativa para o homem se esbaldar com uma coisa que é sua busca desde os tempos do Ariri Pistola: o poder – e o poder, hoje, é fundamentalmente uma aquisição simbolizada pelo dinheiro. Parece que, com raríssimas exceções, o trabalho público, quando justo e ético, não é mais que uma propaganda para a reeleição, ou seja, para que seus mandatários permaneçam pelo máximo de tempo possível com acesso ao paraíso politiqueiro do poder. Quando enfim "descobertos" pela "justiça", a punição é lenta e muitas vezes ineficiente. Assim, gerou-se, com a repetição de infâmias políticas, uma torpe e estúpida jurisprudência que favorece a corrupção no Brasil - e falta muito pouco, em alguns casos mais nada, para essa “prudência” ser agregada definitivamente à Constituição, tornando as defesas e os atalhos jurídicos que protegem a politicagem legalmente incontestáveis.

Depois falam mal do Tiririca. Se Aristófanes estivesse vivo, não duvido que Tiririca poderia ser como foram as mulheres na Guerra do Peloponeso - ou algo ainda mais engraçado. A diferença é que o riso seria muito mais aquele que nos embaraça incomodamente pelo intestino grosso do que o riso que se manifesta ironicamente em algum outro lugar mais afetivo de nosso corpo. Por sinal, você consegue rir, assim? Ou tem vontade de ir ao banheiro?





3 comentários:

  1. É, tu poderias escrever uma paródia, "As moscas ou Cândido", inspirada no Tiririca. Outro escândalo o qual li hoje é a lista de 1600 cirurgias pediátricas em Teresina, pasme, uma capital, que tem apenas 9 cirurgiões pediatras cadastrados no SUS e sequer possui gaze para o ambulatório. Em uma cidadezinha próxima a São Paulo, terra de coroneis, medicamentos são distribuídos mediante a entrega do número do título de eleitor do cidadão solicitante. Olha, Fabiano, não sei se tu não vais desistir quando chegares à minha idade. A podridão é muita; a contrapartida não é compatível com o podre. O que resta é criticar e aguentar firme. Bela crítica. Abração!

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  2. opção do banheiro, só que pra vomitar mesmo.

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  3. Infelizmente o problema está mais próximo do que todos pensam... é só olhar mais atenciosamente para a nossa Santa Cruz...
    Adorei o texto Fabiano!!!!

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