quinta-feira, 18 de março de 2010

A caixa de Pandora

Um das histórias míticas gregas mais conhecidas narra o episódio da caixa de Pandora. Para compreendê-la, entretanto, precisamos remontar eventos bem anteriores, ou, mais especificamente, da época do titã Prometeu, filho de Jápeto e irmão de Atlas, que sustenta o mundo, Epimeteu e Menécio. O mito foi pela primeira vez registrado em linguagem escrita no poema Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, versos  42-105, na tradução de Mary de Camargo Neves Lafer para a Iluminuras - a mesma que publicou o estudo e a tradução de Jaa Torrano para Teogonia, do mesmo autor, que registra, por seu turno, os feitos de Prometeu, entre muitas outras coisas.


Prometeu (em grego, pro + mêthos = o que pensa, percebe ou sabe antes), conforme a Teogonia, é considerado, desde antes da Gigantomaquia, ou Titanomaquia, ou seja, da grande guerra entre titãs e olímpicos, ou, entre Cronos e Zeus, um benfeitor da humanidade. Alguns mitólogos defendem, a partir de determinadas versões míticas, que Prometeu tenha sido o pai da humanidade, isto é, o criador da raça humana, a partir do barro, nascedouro primordial que, aliás, se repetirá em outras mitologias. Mas isso já é assunto para um outro momento. O que mais importa agora é saber que Prometeu, embora aceito entre os olímpicos, porquanto não assumira posição contrária a Zeus na contenda com Cronos, será severamente punido em função de suas transgressões em prol da humanidade. Para ser mais exato, serão duas as principais transgressões. A primeira ocorrerá, conforme Junito de Souza Brandão (Dicionário mítico-etimológico, Vozes, 4ª edição, 2008), em Mecone. Ora, a humanidade era, então, protegida por Prometeu, um titã, e isso incomodava os olímpicos, na medida em que havia enorme tensão entre esses e os filhos de Urano. Os homens viviam uma existência quase divina sobre a terra, e era preciso que se estabelecessem, então, as diferenças. Com o fim da era dos titãs, Zeus decidiu que era a hora de impor-se diante dos homens, e determinou uma reunião, em Mecone, para decidir que parte dos sacrifícios ficaria com o deuses e que parte seria disponibilizada à humanidade - já que os homens comiam e bebiam como divindades. Prometeu, entretanto, sorrateiramente intercedeu, dividindo um gado em uma parte que continha as mais nobres carnes, mas coberta por vísceras, e outra só com os ossos, mas coberta com uma gordura branca que lembrava, à visão, um nobre toucinho. Zeus, que deveria escolher primeiro, em sua condição divina, escolheu, evidentemente, a parte cujo conteúdo, em verdade, limitava-se a pura gordura e ossos. Ao descobrir a trapaça, Zeus enfureceu-se, sabedor de que Prometeu mais uma vez agira em benefício dos homens, que se proliferavam sobre a terra e viviam quase como deuses. Para se vingar, ou melhor, como castigo a tal afronta, Zeus decidiu privar a humanidade do fogo. Há que se salientar, contudo, que Zeus cometeu uma infração epimetéica, ou seja, agiu tal e qual Epimeteu, sobre o qual falaremos mais adiante.



O fogo é, nesse contexto, um símbolo cósmico para a inteligência. Privando os homens dessa simbólica referência ao conhecimento, Zeus imbecilizou a humanidade, que, a partir de então, passou a vagar sobre a terra de maneira irracional, bestializada. Porém, mais uma vez Prometeu, o grande filantropo, intercedeu, roubando uma centelha de fogo celeste e dando-a aos seus "filhos". Uma vez restabelecida a inteligência sobre a terra, a graça da sensatez foi restaurada entre os homens. Há mais de uma versão sobre o roubo do fogo. Uma delas diz que a centelha fora roubada da forja de Hefesto. Outra indica que a centelha foi retirada das rodas de fogo do carro de Hélio, ou, o Sol. Mas o que importa é que Zeus, ao descobrir a transgressão, decidiu que Prometeu seria castigado violentamente. Foi então que, conforme Ésquilo e Hesíodo tão poeticamente retrataram, Prometeu foi agrilhoado junto a uma coluna, na borda de um penhasco, onde teria seu fígado lentamente bicado e devorado por uma águia mostruosa, filha de Équidna e Tifão. O suplício teria a duração do dia e, à noite, para desespero do titã, o fígado se regeneraria para ser, mais uma vez, ao nascer do dia e à chegada da ave, exposto à lenta tortura, num processo interminável. Isso porque Zeus jurara que o castigo jamais seria findado, mas sabe-se que terminará, cerca de trinta mil anos mais tarde, em função da agonia de Quíron - um mito que num futuro merecerá um post - e de suas habilidades adivinhatórias, que dissuadirão Zeus de casar-se com Tétis, a mais bela das Nereidas - outro mito que será abordado quando tratarmos da imensa guerra de Troia.

Embora castigasse Prometeu, Zeus já planejara punir os homens também. Mas como? Simples: através de uma mulher, Pandora.

Pandora (em grego, pan + dóron = todos os dons) foi um pedido de Zeus a Hefesto, que a forjou do barro, ou argila. Criada e animada, cada um dos deuses depositaria nela um tipo de talento. Atena, por exemplo, deu-lhe habilidades na tecelagem e vestimentas nobres. Afrodite lhe presenteou com a beleza. A Graça e a Persuasão a fizeram, ao mesmo tempo, de uma capacidade sedutora sem igual e uma inteligência cheia de astúcia. Hermes, por fim, insuflou seu coração com a perfídia e a mentira. Pandora seria ofertada à humanidade como um presente de todos os deuses, a que continha todos os dons, e foi levada por Hermes à presença de Epimeteu (em grego, epi + mêthos = o que pensa, percebe ou sabe depois), irmão de Prometeu, que há muito havia sido alertado a recusar qualquer presente que um dia fosse ofertado por Zeus, porquanto ele só haveria de retornar desgraças. Mas o irmão, aquele que só percebe depois, imediatamente foi arrebatado pela paixão por aquela mulher excepcional e deciciu desposá-la. Como presente de núpcias recebeu uma caixa, que jamais deveria ser aberta. Alguns mitólogos dizem que a caixa viera com Pandora, outros sugerem que Epimeteu já recebera a caixa antes mesmo da chegada de Pandora. De qualquer forma, é importante saber que a existência humana se constituía em um espaço ausente de desgraças, doenças, fadigas e cóleras. Pandora, todavia, enlouquecida de curiosidade, na noite de núpcias decidiu abrir a caixa, e todas as desgraças foram libertadas. Para piorar, Pandora, na ânsia de corrigir seu infortúnio, tentou em vão fechar a caixa o mais rápido possível, mas não em tempo suficiente para reter algum dos males, conseguindo apenas com que a esperança não fosse libertada. Uma outra versão narra que a caixa continha, na verdade, os bens, que, libertados, retornaram ao Olimpo, enquanto que apenas a esperança permaneceu, como único alento. Assim foi que a humanidade passou então a conviver com a dor e seu caráter de divindade foi esquecido.



Interessante notar que, embora o coração de Pandora tenha sido preenchido com a mentira, é um gesto de ingenuidade impulsiva que, segundo o mito, provocará a libertação das desgraças, até então desconhecidas. Interessante também ressaltar que, embora a aparente concepção machista, retratando a mulher como perdição para o homem, é o equívoco de Epimeteu, que desconsidera o alerta de seu irmão, que traz a caixa para a terra. E se não tivesse sido aceita? Que fique aí uma sugestão para reflexões. De qualquer forma, Prometeu, Epimeteu e Pandora constituem um mito de conhecimento, muito mais amplo que qualquer questão de gênero.

3 comentários:

  1. Muito bom!
    Lembra quando eu te falei de minha hipótese a respeito do nome "Pandora"?
    Parece que, a final de contas, eu tinha uma certa razão... (pan = todos ou tudo).
    Um abraço!!!

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  2. Realmente, um belo texto.
    A mitologia grega imaginativamente rica e complexamente divertida.
    A etimologia é um ótimo (e necessário)passatempo.
    Valeu pela dica de dicionário, eles não são muito fáceis de se encontrar.
    Até mais.

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