quarta-feira, 10 de março de 2010

Manoel de Barros, o poeta das coisas ínfimas

“Por viver muitos anos dentro do mato
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro –
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em uma abelha, era
só abrir a palavra abelha e entrar dentro
dela.
Como se fosse infância da língua”.


BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.


Sou um admirador da poesia de Manoel de Barros, poeta mato-grossense nascido em 1916. Quem me conhece sabe dessa admiração, que nasceu quando comecei meus trabalhos no projeto de pesquisa Leitura e poesia, coordenado pelo Prof. Dr. Norberto Perkoski, na Universidade de Santa Cruz do Sul. Antes disso, sequer desconfiava de sua existência, e era um péssimo leitor de poemas. Com o trabalho aprendi a reconhecer a beleza de um texto poético, e logo passei a ler prazerosamente um poema.


Compartilho aqui uma parte de um estudo que escrevi há uns dois anos acerca de o Livro sobre nada, publicado em 1997.

Antes, convém transcrever uma nota escrita pelo próprio autor sobre seu livro:

"O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares, organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora." (BARROS, 1997).

"Manoel de Barros: uma poética de criançamento

Livro sobre nada é, como diz o próprio criador, uma brincadeira. As palavras são os brinquedos da brincadeira. Não se engane, entretanto, quem pense que, em sendo uma brincadeira, o livro não se pretende um artesanato poético, tecido com apuro, perspicácia e afetividade. A sintaxe despojada, as imagens aparentemente non sense, os neologismos e as curiosas intervenções paratextuais do criador revelam uma obra escrita sob a perspectiva de um menino absorvido pela amplitude dos espaços, das coisas que há nos espaços e pelas formas de comunicar o encantamento frente aos elementos, formas essas que rompem as fronteiras que as pessoas estabeleceram entre os verbos e as coisas. Assim, dizer “eu pendurei um bentevi no sol” torna-se um jeito menino de tentar trazer ao entendimento do leitor todas as forças de significação que representam ter uma experienciação enquanto criança. Um criançamento da relação sujeito-mundo. E aqui, nessa obra, essa experienciação relaciona-se a “tudo o que usa o abandono por dentro e por fora” (p. 7), ou seja, aos elementos desprezados do espaço.  

Na primeira parte da obra, intitulada “Arte de infantilizar formigas”, somos apresentados a um universo de elementos ínfimos: insetos, pássaros, sapos, pedras e bugigangas que o eu-lírico consagra. Aqui o eu-poético volta a ser o menino que vive num lugar esquecido do interior, completamente à margem da civilização urbana: “As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. / Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber” (p. 11).


“O pai morava no fim de um lugar,
Aqui é lacuna de gente – ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
[...]” (p. 13).


Para contextualizar os espaços da infância, o eu-lírico não se preocupa com a lógica: mesmo seus familiares compartilham dessa experienciação infantil de mundo e assumem o mesmo comportamento de extrair do espaço de abandono e dos elementos que o constituem seus aspectos de beleza. Para tanto, não é necessário fantasiar a realidade e imaginá-la diferente, como poderia supor um leitor urbanizado: basta romper com as convenções da expressão.

A segunda parte, “Desejar ser”, revela como o eu-lírico percebe a si e a seu fazer poético.

“[...]
A gente falava bobagens de à brinca, mas o doutor
falava de à vera.
O pai desbrincou de nós:
Só o obscuro nos cintila.
[...]” (p. 15).


À semelhança do fazer infantil, Barros troca palavras, inventa e desregula a ordem da sintaxe. Converte adjetivos em advérbios, substantivos em verbos, verbos transitivos em intransitivos. Tal como as crianças quando aprendem a falar, não termina o pensamento, perde-se em encantamentos e comparações.

Dividida em quatro partes – “A arte de infantilizar as formigas”, “Desejar ser”, “O livro sobre nada” e “Os Outros: o melhor de mim sou Eles” – a obra poética Livro sobre nada, revela-se como a jornada de um andarilho em busca do desvelamento das coisas".

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