segunda-feira, 1 de março de 2010

Perseu, o herói do feminino

Há alguns anos atrás, enquanto participava de um colóquio promovido e organizado pelo Mestrado em Letras da UNISC, local em que trabalhei durante mais ou menos seis anos, assisti uma palestra da Profª. Dr. Rita Terezinha Schmidt, da UFRGS, que fazia uma exposição feminista a partir do mito de Perseu, herói grego que fundou uma das mais poderosas linhagens míticas, os Perseiades, uma linhagem de grandes reis e heróis afortunados, tendo Héracles (ou Hércules, segundo a tradição romana) como um de seus descendentes diretos.

Não lembro o título da palestra - talvez até tenha anotado em algum lugar. De momento lembro apenas que a professora realizava uma leitura crítica do herói, partindo de um posicionamento feminista. Schmidt comparava Perseu, que, em seu feito mais conhecido, decepou a cabeça de Medusa, a um mercenário. Isso porque o herói teria, deliberadamente, extinguido uma potência mítica feminina. Na época eu acabara de estudar o mito. O assunto, portanto, estava bastante claro e quente para mim. Obviamente não concordei com o posicionamento da professora - nem poderia concordar. Cheguei até a ensaiar uma réplica, mas não quis me pronunciar. Mais tarde me arrependi por não ter contra-argumentado, e cheguei à conclusão que teria sido um debate interessante, sobre um dos grande heróis da mitologia grega, entre um aluno e um Doutor.

Em linhas gerais, acho que a figura escolhida pela professora para ilustrar sua abordagem feminista foi bastante infeliz. Tivesse escolhido Odisseu, por exemplo. Perseu é um dos poucos heróis, senão o único, cuja nobreza de caráter é praticamente intocável. O herói, filho de Zeus e Dânae, uma bela mortal, é talvez a mais exemplar figura mítica, incluindo o panteão divino, para alguém ilustrar uma relação de dignidade entre um homem e uma mulher, entre o masculino e o feminino. Para começar, ele formará com Andrômeda o talvez único casal cuja felicidade será sempre plena, a partir do momento da união conjugal, a tal ponto que, ao fim de suas vidas, receberão a honra divina de serem transformados em constelações e postos lado a lado sobre o firmamento, como para formar um símbolo atemporal da união exemplar. Honraria recebida muito mais pelo que se constituiu a história matrimonial e existencial do casal do que pela paternidade divina de Perseu. É através de uma reunião entre os deuses que o destino de ambos é decidido, de maneira unânime, por sinal. Até hoje permanecem unidos, no céu, para a contemplação de todos os povos. Ora, será mesmo possível uma crítica feminista a tal herói? Mas levemos em consideração, então, o ato que, segundo a professora, se constitui como a destruição vil de uma potência feminina, isto é, a morte de Medusa.


Por que Medusa pode ser considerada uma potência feminina? Simplesmente por uma questão de gênero? Até onde eu sei, Medusa não fazia seleção de suas vítimas, ou seja, tanto homens quanto mulheres que se aventurassem até a ilha habitada por ela e suas irmãs eram devorados ou transformados em pedra. Claro que a possibilidade de uma mulher ter se aventurado em tal região é bastante improvável, afinal nem todas podem ser consideradas heroínas, como Hipólita, a rainha das Amazonas, que mais tarde desafiará até mesmo Héracles, promovendo um embate descomunal. Mas podemos levantar a hipótese de que mulherem tenham sido abandonadas à morte na ilha das górgonas, como castigo, e não há registro de que o monstro as poupava. Ou seja, poderá ser ela uma potência, com uma força atendendo apenas aos princípios de sua própria natureza, alheia à questão feminina? Evidente que estou tomando a mitologia grega clássica como referência. Seria injusto utilizar uma releitura moderna, mesmo que pudéssemos argumentar que os gregos de certa forma zombavam do elemento feminino - embora ele, ironicamente, porquanto parte da própria concepção grega, esteja presente na constituição do masculino.

Imagino que a professora considerou Medusa como uma potência em função de uma estrutura de gênero - o que, para mim, é um argumento muito problemático -, e pela força mágica que ela representou enquanto viva - o que também pode ser problematizado, dadas todas as circunstâncias do mito, sem falar em tantos outros exemplos que seriam mais pertinentes. Além disso, segundo o argumento de Rita Schmidt, há um machismo explícito e uma crueldade masculina subliminar no fato de Medusa ser caracterizada somente pela sua monstruosidade, em detrimento de seu poder, atitude típica do homem frente à potencialidade feminina. Com esse posicionamento consigo concordar apenas em parte, porque tal consideração pertence não só ao mundo masculino. Há que se levar em conta que a própria Atena, uma deusa, fornece o armamento necessário para matar Medusa, como também revela conhecimentos desconhecidos até então pelo herói: apenas Medusa é mortal; suas duas irmãs são imortais. Atena o ensina, então, a reconhecer o alvo, a fim de não cometer o equívoco fatal de atacar suas irmãs imortais, bem como a realizar esse processo sem olhar diretamente para ela, evitando sobremaneira os olhos, que o transfomariam em pedra. Atena, pois, vai contra as potências femininas? Outra questão, referente à origem do aspecto tenebroso de Medusa, meio pássaro, meio mulher e meio serpente, pode ser discutida, mas não pode ser concebida em condenação a uma postura exclusivamente masculina. Basta lembrar o mito de Cila, o imenso monstro marinho presente na Odisséia, transformada por uma enfurecida e enciumada Circe. Sua monstruosidade é fruto da inventividade maligna de uma feiticeira tomada pelo ciúme, que desejava que a ninfa Cila, sob aquele aspecto hediondo, jamais pudesse gozar novamente da afetividade masculina.

Se Rita Schmidt dissesse que Atena, na verdade, é uma deusa masculinizada, eu teria um outro argumento, ainda mais consistente, muito embora  poderia dizer que essa masculinização de Atena está relacionada mais à figura guerreira, empunhadora de armas (no mundo carnal, quase que absolutamente restrita aos homens), que a deusa representa do que qualquer disposição de caráter - questão que, a propósito, serviria como exemplo muito melhor que Medusa para uma exemplificação de potência feminina. Mesmo assim, Atena sente-se e quer-se mulher, bela e forte ao mesmo tempo, na medida em que, entre muitas outras coisas, participa da disputa pelo pomo da discórdia (o famoso concurso de beleza que originirá a guerra de Tróia). O argumento mais forte que vejo está no fato de que a jornada para matar Medusa não pode ser justificada pura e simplesmente com a sinalização de um impulso mercenário, como a palestrante enfatizou. Perseu, inquestionavelmente, não pode ser caracterizado como mercenário, na medida em que a morte de Medusa é uma determinação para o alcance da liberdade da figura materna, a bela Dânae, mantida no palácio do rei Polidectes em função de sua recusa em aceitá-lo como esposo. Como a incumbência, conforme crê, é impraticável, o rei vislumbra que, sendo Perseu morto por Medusa, não haverão mais empecilhos para o cumprimento de seu desejo. Acreditava que Dânae, sabedora da morte do filho e indefesa, enfim cederia. Seu desejo por ela é tamanho que chega a aprisioná-la em uma masmorra após a partida de Perseu - e talvez a mantivesse lá para minguar até a morte, não fosse o bem-sucedido retorno de Perseu, já ao lado de sua Andrômeda. O mito de Perseu é o mito do amor ao feminino. Medusa talvez não seja um monstro feminino, mas uma maldição sui generis e, concomitantemente, alheia a gêneros. 

Um viés feminista não poderia ter ignorado que a morte de Medusa, se por um lado extingue uma (questionável) potência feminina, por outro desencadeia uma série de eventos em que há uma presença de equilíbrio entre o feminino e o masculino como não há em outros mitos: a salvação de sua mãe, Dânae, e a união plena de felicidade com sua esposa, Andrômeda. Perseu é um herói feminino e um herói do feminino.

Há ainda um complemento. Do pescoço degolado de Medusa saltam, ironicamente, duas potências masculinas: um gigante, Crisaor, aparentemente filho de Medusa e Poseidon (que estranhamente desaparecerá, até onde eu sei, dos registros míticos posteriores), e Pégaso, o cavalo alado que mais tarde será utilizado pelo herói Belerofonte - também filho de Poseidon.

Outro fato que corrobora essa tese é que, segundo uma tradição, é Perseu quem petrifica Atlas, o titã que sustenta a abóbada celeste, ou, o mundo, ao mostrar-lhe a cabeça decepada de Medusa. Atlas acreditava que Perseu era um ladrão que, conforme um oráculo havia predito, viria lhe tomar as maçãs de ouro das quais era guardião. Diante da incredulidade do gigantesco deus, que não acreditava que alguém seria capaz de subjugar Medusa, Perseu retira a cabeça do saco mágico que Hermes havia lhe dado a fim de comprovar sua história e dissuadir o titã da ideia de que era ele o usurpador de seu tesouro. Mesmo após a morte a cabeça ainda conservava o poder de petrificar quem a fitasse - e Perseu foi descobrir de forma ingênua seu poder, transformando Atlas em uma imensa montanha, que estaria localizada na África. Sem falar que, no final, Perseu dá a cabeça a Atena e devolve suas armas - num claro gesto de dignidade. Poderia ser esse um ato de um mercenário?

A cabeça de Medusa é, então, incrustada no escudo de Atena - ainda mantendo sua capacidade de petrificar aqueles que o fitarem. Creio que o olhar de Medusa, que entendo como o principal elemento simbólico da constituição dessa potência feminina, é, portanto, preservado, principalmente se considerarmos que suas irmãs, as górgonas Esteno e Euríale, imortais, possuíam a mesma capacidade. Atena passa então a ser uma significativa fonte de poder oriundo de vários elementos simbólicos femininos e sua representação, a partir desse e de muitos outros fatos, uma transgressão à concepção do feminino, associada por muitas tradições, à fragilidade e à incapacidade da desenvoltura guerreira.



Se Medusa representa uma potência feminina digna de nota, isso é um questão que renderia um interessante debate. Geralmente sua figura desperta o interesse de mitólogos em função de uma simbologia do olhar. Mas a concepção de Perseu como um mercenário irracionalmente dado a instintos masculinizados é absolutamente improcedente. E não vejo hipótese que invalide essa afirmativa - a não ser que alguém escreva um romance elaborando uma releitura de todo o mito. Mas aí teríamos que realizar nosso estudo apontando com clareza que estamos tomando como base essa releitura e não o mito clássico. E não foi isso que a professora Rita Schmidt fez.

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