sábado, 27 de fevereiro de 2010

Tarantella quentiniana

Quentin Tarantino iniciou sua carreira cinematográfica com o brutal Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992). Dois anos mais tarde chegava à telona Pulp fiction (Pulp fiction, 1994), com o qual recebeu inúmeros prêmios ao redor do mundo, inclusive a Palma de Ouro em Cannes. Começava então uma espécie de culto ao cinema do jovem realizador americano, que trazia em suas narrativas fílmicas um punhado de intertextos e referências a diversos elementos icônicos da cultura pop, fossem eles advindos do underground ou dos clássicos de cinema do século passado, incluindo o cinema trash, o porn movie e o western spaghetti. Além disso, bebeu alucinadamente em fontes da música alternativa, dos animes orientais – e do underground oriental também – e de diversas linguagens cinematográficas, como o expressionismo alemão, a nouvelle vague francesa e o cinema noir.



Tarantino mesclou esses elementos, elaborou entre eles uma conjunção dialógica a princípio quase bizarra, mas injetando um fôlego renovador, explorou suas potencialidades imagéticas e discursivas numa junção quase absurda, reuniu em torno de si artistas tão ou mais psicodélicos que ele e, no final das contas, ainda sacudiu uma última vez o pacote, gerando uma das linguagens mais autorais e talvez originais do cinema americano moderno. Tarantino conseguiu, do seu jeito, orquestrar tudo o que existe de mais paradoxal em termos de símbolos culturais modernos, fazendo-os habilmente convergirem e oferecerem ao espectador uma dose cavalar de um dos mais puros entretenimentos já concebidos. Claro que tamanha ousadia também produziu diversos contestadores, mas não há dúvida de que a contestação é engendrada pelo próprio cineasta – e com grande habilidade.

Entretanto o cinema de Tarantino não se limita a exagerar sua absorção icônica. Trata-se de um cineasta com um domínio muito grande de uma linguagem cinematográfica própria, que explora consciente esses ícones de fenômenos que são ou já foram pops, ou que simplesmente mexem com o imaginário popular e até mesmo com certas inquietações sádicas. Mas Tarantino, no fundo, é um brincalhão. Seu passatempo é embaralhar jogos conceituais e referências históricas e montar, afinal, uma diversão para gente esperta – e nem sempre há público disposto a compactuar com esse tipo de concepção.

Seu mais recente trabalho, Bastardos inglórios (Inglorius basterds, 2009) é talvez sua mais bem-sucedida brincadeira narrativa. Um legítimo pastiche, em que um grupo de anti-heróis, ou melhor, bárbaros, inspirados nas conhecidas táticas de intimidação dos índios americanos, são incumbidos de, à revelia, espalhar o terror pelo Terceiro Reich, colecionando escalpos de soldados nazistas. Ao mesmo tempo, Shosanna, a verdadeira heroína da história, sobrevivente da chacina de sua família – em um prólogo com uma mise en scène brilhante –, arquiteta um plano audacioso para eliminar o alto escalão nazista. Com tal enredo em vista, Tarantino escreveu sua história e a dividiu em capítulos, o que terminou conferindo uma condensação impressionante às ações da narrativa, aparando lentamente todas as arestas e fazendo-a progressivamente limitar-se apenas ao essencial. Um grande filme. Cabe ainda salientar a atuação impecável de Christoph Waltz como o oficial da SS Hans Landa. Aliás, essa parece ter se tornado uma marca do cinema de Tarantino: conseguir destacar uma atuação colossal de alguém que até então não havia recebido oportunidade – ou que já se encontrava na obscuridade – e erguê-la como emblema de sua fantasia cult.








* Texto integral publicado no jornal Folha do Mate, em 27 de fevereiro de 2010.

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