sexta-feira, 25 de junho de 2010

Cila e o feminino cósmico

Uma das mais conhecidas passagens da Odisseia, de Homero, poema épico grego que narra o retorno de Odisseu ao seu lar, Ítaca, após a guerra de Troia, trata da passagem das naus do herói pelo estreito de Messina, região que estaria localizada próxima à costa siciliana, na Itália.

O estreito de Messina compunha-se de um aglomerado de rochedos e constituía-se em um local de perigosa travessia. Entretanto, segundo Circe, era a única passagem em que o herói poderia se colocar a caminho de sua terra sem ser importunado por Poseidon, que desejava vingar a cegueira de seu filho, o ciclope Polifemo. Contudo, haviam razões muito óbvias para que Poseidon não se desse ao trabalho de impedir a passagem do herói pelo estreito, que, aliás, era do desejo do deus marinho. Lá, em uma caverna escura e úmida, no pico de um rochedo, pela qual seguia o único caminho marítmo até o outro lado, espreitava um imenso monstro marinho, Cila, cuja etimologia é bastante complexa e incerta. Os versos do poema de Homero que narram esse episódio são de uma tensão impressionante. No fim Odisseu perderá seis de seus compatriotas, Estésio, Ormênio, Ânquimo, Anfínomo, Órnito e Sinopo, seus mais bravos e fortes guerreiros, que fizeram grande campanha guerreira nos dez anos da tomada de Troia. Todos serão violentamente devorados por Cila, que não poupava absolutamente nada que se aventurasse no local.



No fim do percurso o herói e seus companheiros desembocarão em uma imensa queda d'água, cujo destino era nada menos que Caribde, um gigantesco monstro, ainda mais imponente que Cila, que havia sido precipitado ao mar por Zeus por ter roubado e devorado de Héracles o gado que ele havia tomado de Gerião, filho de Crisaor, que, por sua vez, foi o gigante que saltou do pescoço degolado da Medusa, assim como Pégaso, quando Perseu lhe degolou, e cuja paternidade alguns mitólogos indicam como sendo de Poseidon. Três vezes ao dia Caribde escancarava sua imensa boca e engolia tudo o que estivesse às voltas, tamanha a sua voracidade, expelindo, depois, a água do mar. Justamente nesse instante, em que o monstro abria sua boca para engolir tudo o que estivesse sobre o mar, as naus de Odisseu precipitavam-se da caverna de Cila e caíam diretamente sobre as numerosíssimas fileiras de dentes de Caribde. Somente Odisseu sobreviveu a esse episódio.

Assim como Caribde, filha de Geia e Poseidon, Cila nem sempre foi esse monstro medonho que a tudo devorava com extrema insaciedade. Muito antes, era uma belíssima Ninfa, desejada e admirada por muitos, tanto homens quanto mulheres. Entre seus adoradores estava Glauco, um deus marinho, sempre relatado como uma das mais feias divindades do panteão mítico grego. Em sendo desdenhado pela Ninfa, filha de um outro deus marinho, Fórcis, e Crateis, segundo Homero, Glauco recorreu a Circe, a mesma feiticeira que indicara o estreito de Messina a Odisseu, para que fizesse uma poção que levasse Cila a apaixonar-se por ele. Todos os dias a bela banhava-se num mesmo riacho, e o plano era derramar o líquido mágico na água, operando, então, o processo da transfiguração amorosa. Havia, entretanto, um importante porém: Circe era apaixonada por Glauco. Sabedora da incontrolável paixão do deus pela Ninfa, passou a concebê-la como uma rival, ardilosamente valendo-se, então, do pedido de Glauco para subverter a poção, transformando Cila em um monstro tenebroso de seis cabeças, três fileiras de dentes afiadíssimos em cada uma, doze pés e seis cães hediondos e famintos em torno da cintura. A intenção era a de que homem ou pessoa alguma desejasse se aproximar da Ninfa a partir de então. Pior: quem ousasse seria sumariamente devorado. Após o episódio, Cila passou a vagar desesperada pelos pântanos e florestas da região. Como seus uivos assustassem os viajantes, decidiu refugiar-se em lugar ermo e escuro, no estreito de Messina, longe da visão e do alcance de todos. Lá permaneceu em solidão, faminta e em desespero, até a chegada das naus de Odisseu. Mais tarde foi morta por Héracles, que, em busca de um rebanho que se perdeu nos rochedos e terminou devorado, descobriu o monstro e o expiou. Seu pai, Fórcis, mais tarde conseguiu lhe ressuscitar, e aparentemente lhe restaurou a forma humana.

O primeiro aspecto que chama a atenção em um estudo sobre Cila é que trata-se de uma invariável potência do mundo feminino, seja em sua forma humana ou monstruosa. Enquanto humana, a beleza lhe é um atributo especial; quando monstro, a força, a fome e o ardil lhe são talentos inegáveis. O segundo aspecto é a natureza cíclica que constitui sua historicidade existencial: mulher-besta-mulher. Há uma bestialização vulgar de sua humanidade. Vulgar porque originada pelo mesquinho ciúme da trapaceira Circe. Todavia, embora o propósito seja banal, é ele quem paradoxalmente impede que seja consagrada uma subversão de ordem impetrada pelo masculino: a concretização de um desejo amoroso egoísta e não recíproco. A mesma banalização perseguirá Cila em sua morte: Héracles a mata porque não aceita a irracional irresponsabilidade animal, que tranquilamente afunda-se na caverna: uma justificativa acidental para o seu aniquilamento. Entretanto, concluindo um ciclo com, digamos, justiça, ou, corrigindo cosmicamente um percurso existencial involuntário,  Cila será ressuscitada por seu pai, Fórcis, e terá, segundo alguns mitógrafos, restituída a sua humanidade.

Embora a perversidade de Circe, uma feiticeira, Cila, graças a ela, poderá percorrer, mesmo em ciclo tenebroso, uma natureza existencial que irá manter-se, até onde sabemos, restrita apenas à contemplação enquanto Ninfa, sem a necessidade de um parceiro - até porque não nos parece ser esse o propósito mítico nesse caso. O mito inclina-se a reaproximar de uma cosmogênese uma ontologia de masculino e feminino, ou seja, configura, subliminarmente, um percurso ontologicamente cósmico que preservará um feminino pleno e perene, indicando que mesmo disposições dessacralizadas de macho e de fêmea não poderão impedir ou deturpar uma conclusão feliz para propósitos de ordem maior. No fim das contas será o pai, ou, uma figura masculina, o elemento concluinte desse caminho cósmico. Os acontecimentos físicos que impõem conflitos da ordem de gênero apenas se constituirão como o natural cumprimento de ciclos superficiais que, num sentido mais amplo, terminam conduzindo à plena realização desse feminino, sinalizando, afinal, uma harmonia de nível cosmogônico: a essência e o essencial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário