terça-feira, 8 de junho de 2010

Imagem e ausência: o silêncio entre um gesto e um anseio no cinema de Michelangelo Antonioni*

Silêncio, por favor,
enquanto esqueço um pouco
a dor do peito
[...].

(PAULINHO DA VIOLA. “Para ver as meninas”)


Michelangelo Antonioni, cineasta italiano nascido em 1912 e falecido em 2007, é, sem dúvidas, um grande realizador de imagens de ausência. No silêncio e no torpor, na distância e no desencontro, na ausência e na indiferença, com seu cuidadoso artesanato fílmico imagético-narrativo, Antonioni engendrou o enquadramento desses instantes aparentemente pouco expressivos, e, com eles, elaborou importante cinematografia para a história da sétima arte, com elementares transformações formais no final da década de 50 e no início dos anos 60 do século passado.


Embora sua carreira cinematográfica tenha iniciado quase quinze anos antes, com o filme Gente do pó (Gente del po, 1947), seguido por diversos outros, foi a partir da década de 60 que Michelangelo Antonioni tornou-se um cineasta mundialmente celebrado, recebendo diversas premiações em festivais de cinema ao redor do planeta com sua assim chamada trilogia da incomunicabilidade: A aventura (L’avventura, 1960), A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962), um conjunto de obras que muitas vezes recebeu a alcunha de “trilogia do tédio”. Na verdade, a narrativa fílmica de Antonioni não dispõe, argumentativamente, uma funcionalidade às suas imagens para além do vigor de uma espontaneidade lacônica, verbal, gestual e corporal, e espacialmente desorientadora.


A funcionalidade do cinema de Antonioni reside em uma contemplação imparcial de tipificações humanas antepostas como que representando o sumidouro de um espelho – o que ocorre diante de outras pessoas ou do próprio destino. Sua imagem compõe momentos vazios, ou, esvaziados, e a percepção para com esse quadro geralmente se dá de maneira bastante lenta, como que consumindo, por fim, um grito sufocado, ou um suposto fôlego existencial. O tempo com que seu cinema se detém na construção pouco efusiva das imagens desses instantes pontualmente potencializa o silêncio, a indiferença e o distanciamento de seus tipos humanos, que, no caso da referida trilogia, são componentes de uma relação matrimonialmente instituída. Seus cônjuges engendram o tédio e o enfado burguês – mas o espectador compreende que em meio a esse silêncio há uma ânsia, ou seja, uma presença inquieta que quer deixar-se renovar, mas, impossibilitada, mantém-se letárgica. Também percebe que essa letargia afetiva constitui, ou pode constituir, qualquer tipo humano desatento.


Em A noite, por exemplo, Lidia (Jeanne Moreau) e Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni) formam um belo casal burguês na iminência de um total rompimento físico e afetivo. A relação entre ambos é a relação do mal-estar inconsequente – e é exatamente essa inconsequência que em geral será o maior incômodo ao espectador. Lidia transita entre o resgate de algum resquício afetivo e a incômoda resignação. Giovanni, por outro lado, indiferente e sucumbido ao fastio, até mesmo profissional, apenas cumprirá, dia após dia, com a cartilha matrimonial instituída ao marido ortodoxo. Quando juntos, serão pequenos gestos e breves diálogos que sinalizarão o desencontro afetivo de ambos – potencializado pelos espaços cênicos e pelo alinhamento das personagens nesses espaços.


O filme, em aproximadamente duas horas de projeção, apresenta uma economia de espaços, limitados, de maneira geral, a um hospital, às ruas de Milão, ao lar do casal e ao lar dos Gherardini, onde ocorrerá uma festa. O hospital retrata o quadro aparentemente há muito disposto de um casal à margem de si mesmo, intensificado pela visita a um amigo doente, Tommaso Garani (Bernhard Wicki). Nele Antonioni já realiza um primeiro tratamento à comunicação ínfima advinda de uma ausência de aproximação afetiva que Lidia parece querer suplantar, mas não encontra a devida consonância amorosa. Antonioni introduz o espectador ao desconforto, seja através da monossilábica relação de Lidia e Giovanni ou da composição cênica, com ênfase no amigo doente que permanecerá interposto ao desinteresse mútuo do casal. Essa incomunicabilidade torna-se opressora quando da sessão de autógrafos do marido, escritor, que será filmada logo em seguida e levará Lidia a abandonar o evento e partir desorientada pelas ruas de Milão.

O espaço das ruas conduzirá Lidia a um lugar que o casal costumava frequentar em tempos mais prósperos de amorosidade conjugal, mas apenas para confirmar sua desorientação em meio a uma espécie de esperança afetiva que se ensaia resignadamente, sobretudo quando Giovanni não demonstra perceber as ansiedades de sua esposa. Note-se que Lidia, mesmo com a possibilidade de renovar com algum fôlego seu vazio afetivo, através do interdito, parece insistir no homem que matrimonialmente escolheu para celebrar o curso de um empenho amoroso: sua lealdade é uma persistência instituída, não um desejo profundo. Afinal, o vazio não pode ficar vazio quando estamos falando, em termos humanos, de compartilhar impulsos afetivos. Tal atitude, se insistente, engendraria uma sobrevida completamente embriagada pelo tédio – e é isso que Antonioni brilhantemente ilustra em A noite.

A saturação do afeto será ainda mais potencializada no ambiente do lar, quando Giovanni irá mostrar-se completamente desinteressado à sugestão sensual de Lidia – que indiretamente o convida a participar de seu banho. Agora ultrajada, aparentemente à beira de um colapso afetivo, mas mais ardil que resignada, e disposta a observar a anulação de seu marido como parceiro afetivo, Lidia sugerirá um jantar em um night club. No local, mesmo em meio à efusão erótica de uma dança oferecida como espetáculo aos frequentadores, Giovanni permanecerá indiferente e distante, com um mínimo de gestualidade e uma disposição verborrágica quase inexistente no sentido da percepção das angústias de sua esposa e da estagnação de sua relação.

Contudo, Lidia, ainda disposta a restabelecer – ou compreender – seu casamento, interrompe o instante romântico – mas não romantizado – e decide que o casal deve atender ao convite dos Gherardini, que para aquela noite prepararam uma festa em sua residência. Esse será o espaço-chave do enredo que delineará, em longa temporalidade, o completo afastamento do casal e o ensaio de uma reaproximação.


No espaço da residência dos Gherardini Antonioni irá inscrever diversos elementos sígnicos no sentido de ilustrar o distanciamento de seus protagonistas. Em meio a esses elementos irá introduzir a personagem Valentina Gherardini (Monica Vitti, belíssima), possivelmente um affair de Giovanni, que configura-se como promessa de reviravolta perene no que tange à disposição afetiva da personagem de Mastroianni, mas representa, pelo contrário, tão somente um objeto fulminante para um vazio que, como já dito, não pode ficar vazio. Por outro lado, Lidia também encontra-se na iminência de preencher suas lacunas afetivas com um sujeito que aparentemente conheceu naquela noite e que parece resgatar seu entusiasmo existencial. Entretanto, enquanto Giovanni irá desencadear um romance com Valentina – o qual será testemunhado por sua esposa –, Lidia negará novamente a possibilidade e não realizará o interdito, possivelmente porque a concretização do afastamento, para ela, não pode se dar em nível consciente, enquanto que, para ele, a relação extraconjugal não será uma problematização, mas talvez uma resolução imediata inconsciente. Seu mundo, intelectual, é volúvel. O de Lidia, sentimental, é o da busca pela estabilidade.

Os rápidos encontros entre o casal serão para comentários frívolos, como “é bonito aqui, não?”, e, em diversas cenas, não somente durante a festa, suas atenções e seus olhares irão perder-se em elementos externos e completamente dissociados – ou sinalizadores – do desencontro que se manifesta na vida do casal. Lidia não faz mais parte, diretamente, dos anseios existenciais de Giovanni – apenas cumpre um papel socialmente instituído. Para ela, entretanto, ele representa o parceiro irremovível, e é essa situação ambígua e estagnada que Antonioni busca representar, e que talvez seja menos incomum do que acreditamos.

Um fôlego – breve ou duradouro, não sabemos – só será disposto quando, ao amanhecer, no fim da festa, Giovanni e Lidia restabelecerão um novo pacto de afetividade: ela lhe apresenta uma carta em que descreve seus sentimentos, evocando, finalmente, a compreensão do marido para o estado da relação e para a necessidade de serem redescobertos um para o outro. Um pacto, entretanto, circunstancial, que configura-se de modo não menos ortodoxo que todos os elementos que deflagraram sua letargia. Em outras palavras, um pacto meramente convencional, como supomos ter sido a cerimônia originária de seu enlace matrimonial.


Antonioni faz-nos inquirir sobre lacunas que se apresentam como consequência de um típico casamento burguês desinteressante, e seus espaços fílmicos, bem como a relação dos personagens dentro desses espaços, assomam, um após o outro, o distanciamento, a indiferença e o desconforto, culminando com uma sufocante ausência de liberdade e de afinidade afetiva. O resultado é uma insistência em instaurar um elo imaginário para um relacionamento amoroso que, em silêncio, combate-se para manter-se quase que em penitência e em função de uma decadente cultura social.

* Artigo produzido para a disciplina Seminários de Cinema, ministrada pelo Prof. Dr. Josmar Reyes, do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Escrito como trabalho acadêmico, o texto contém spoilers.

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