sexta-feira, 23 de julho de 2010

George A. Romero e sua alegoria para o capitalismo contracultural

Exatamente dez anos após o lançamento de seu primeiro filme, A noite dos mortos-vivos, já comentado aqui neste blog, George Andrew Romero retornava ao tema que o consagrou com O despertar dos mortos (Dawn of the dead, 1978). Cumprindo a promessa de comentar a cinematografia dos mortos-vivos de Romero, apresento um estudo sobre o seu segundo filme, bem como outras considerações contextuais e fílmicas.

Há algumas razões que me fazem escrever sobre George A. Romero e seus filmes sobre os mortos-vivos. A primeira está relacionada a um certo desdém de alguns pensadores sobre a matéria fílmica em questão, geralmente classificada como produto comercial de gênero - no caso, o terror ao estilo gore - e, por isso, pré-concebida sob juízo de valor negativo, qualquer que seja o resultado. Além disso, seu relativo sucesso é usualmente vinculado a um costumeiro baixo senso artístico de uma legião de fãs sanguinários que lotam cinemas buscando meramente saciarem-se com imagens de violência. Assim, se o filme possibilita um atendimento a essa expectativa, bastante condicionada, ele é imediatamente relegado, no meio crítico, a um submundo de cinema enquanto canal de expressão artística.  Para mim, algumas obras merecem uma (re)valorização - como, neste caso, a concepção romeriana de horror -, distinguindo-as de um cinema enlatado, de péssima qualidade e mau gostoQuero defender que suas proposições em geral encontraram, justamente através de uma perspectiva de horror, a possibilidade de elaborar questões que vão mais além de sua desdenhada figurativização de enredo, bem como o que talvez seja mais marcante em suas obras: a força contextual, mais ou menos ao estilo dos expressionistas alemães, que não deixa de ser um viés, ou uma tradução visual metafórica, para trabalhar com aspectos do gênero humano que, se transpostos filmicamente em linhas menos alegóricas, não deixariam de expor barbáries menos contundentes que as que o diretor nova-iorquino expôs em sua cinematografia zumbi. Poucos foram os cineastas que conseguiram elaborar arte com material de tal natureza. George A. Romero escolheu, para tanto, os mortos-vivos, uma excelente maneira de problematizar o humano e as relações humanas com argumentos críticos e até sarcásticos, embora muitos ainda resistam à caracterização real-fantástica dos mortos-vivos, sobretudo em função de um apelo violento que se faz a partir de seus instintos antropofágicos e que, com isso concordo, poucas vezes foram aproveitados com conteúdo mais significativo  que a mera filmagem de banhos de sangue. Romero, aliás, possivelmente seja o cineasta em que todos, isso mesmo, todos os demais diretores de cinema basearam-se para difundir um gênero: o horror. É necessário salientar, entretanto, que Romero não é nenhum grande artesão de imagens, como Murnau era. Pelo contrário: suas imagens são, cinematograficamente, geralmente muito ruins. Sua habilidade conceitual, porém, é das maiores quando pensamos em uma maneira imperfeita de fazer cinema - e  talvez resida justamente em sua imperfeição uma força fílmica paradoxalmente extra.

Como já sugeri, os mortos-vivos enquanto figuras metafóricas para uma (des)humanização em sentido político, social e cultural são ótima alegoria para fazer um filme sobre os vivos. A partir disso seria possível elaborar uma longa reflexão. Romero já disse, muitas vezes, que poderíamos substituir os mortos-vivos por qualquer outra situação que deflagrasse uma transfiguração de conceitos e convenções políticas, sociais e culturais: um ato terrorista desmedido, uma evento climático, uma epidemia viral ou bacteriana, uma revolução, enfim. Ou mesmo uma simples situação de ameaça à integridade humana e à vida. Os mortos-vivos representam, portanto, muito mais que uma figurativização, mas um elemento para tensionar menos passivamente diversos aspectos culturais do humano, ou, em outras palavras, para desmascarar o que se faz em detrimento de o que se crê fazer, ou, de o que, em situação de conforto, se acreditava que seria feito. Isso em termos de ação. No que tange ao contexto da ação, o cineasta nada mais fez que filmar exatamente as mesmas situações que percebia no mundo real - e nisso reside um seus brilhantismos: seu desmascaramento não é só cultural, mas também político, denunciando, antes ou durante determinadas transfigurações sociais e institucionais, ainda hoje operantes, certos reflexos políticos grosseiros sobre a ordem cultural geral de um povo. Seu verdadeiro horror é muito mais conhecido do que se pensa. O que muda, em termos ficcionais, é que Romero escolheu os mortos-vivos para uma alegoria humanística decadentista e os concebeu como uma catástrofe pandêmica apocalíptica aparentemente irreversível. Criou, para tanto, o já comentado conceito de living dead, tão mal copiado ao longo dos anos, e, repito, com ele inverteu conceitos socialmente convencionados, sobretudo os de ordem política e moral, engendrando uma brilhante ironia que desmascarava, num realismo-fantástico, as falácias das relações humanas e de todas as suas instituições, além de muitos outros aspectos. Essa foi a maneira mais contundente que o cineasta encontrou de provocar uma espécie de catarse, aderindo ao que, à época, foi chamado de movimento contracultural, muito embora não tenha encontrado colaboradores - pelo menos não depois de seu primeiro filme - que compreendessem seus objetivos artísticos mais substanciais, saciando, então, em troca de financiamento, centenas de fãs com um tratamento gore mais visual que conceitual. Esse talvez seja o aspecto mais negativo de sua cinematografia dos mortos-vivos: a ausência de uma imposição mais consistente de sua mais substancial proposição fílmica, tão bem expressada em seu primeiro filme, embora o próprio Romero dissesse, anos mais tarde, que jamais fez  questão de ser levado a sério. Queria, mesmo, era fazer filmes. Não foi, entretanto, o que seus dois primeiros trabalhos com os mortos-vivos denotaram. Não em termos tão simplistas. 

Uma outra razão de falar sobre Romero diz respeito à amedrontadora transfiguração que os mortos-vivos impingiam ao que desde infante concebi ontologicamente como humanidade, seja por sua natureza fantástica particular ou pela ameaça que representavam à continuidade da vida como usualmente concebemos - e não há artista mais profícuo nesse sentido que Romero. Como lidar com uma situação a qual você não consegue coletivamente reverter? Essa é uma pergunta menos incomum do que pensamos, de um ponto de vista individual. No mundo de Romero, resta sobreviver, sem mais fronteirizar a ordem e o caos, e é exatamente isso que as personagens de seu segundo filme, num primeiro momento, perseguirão. Para tanto, a partir de princípios que transitam entre o onírico e um superego reconfigurado, reproduzirão o mundo que conheceram, valendo-se das seguras e imponentes paredes de um enorme shopping center, um dos símbolos mais representativos do capitalismo.

Impõe-nos ressaltar a curiosa não reincidência dos principais colaboradores de A noite dos mortos-vivos. Até onde sabemos, absolutamente nenhum dos parceiros de George A. Romero retornou à produção de seu segunda longa-metragem sobre os mortos-vivos. A produtora Image Ten, fundada e administrada por Karl Hardman, Marilyn Eastman, Russell Streiner, John A. Russo e Romero, aparentemente foi fechada anos antes, talvez devido à péssima administração dos recursos obtidos através de A noite dos mortos-vivos e de uma ou duas produções posteriores. Sabe-se que, antes mesmo de esperar por sucesso, seus direitos autorais foram vendidos por uma bagatela incompreensível, indicando um pessimismo de seus próprios gerentes. Se tivessem permanecido com os direitos, Romero e seus amigos não precisariam hoje passar a noite em claro procurando financiamento para seus projetos - ou abandonar completamente a carreira. Para financiar O despertar dos mortos, George A. Romero contou com a colaboração dos italianos, especialmente Dario e Claudio Argento, que haviam se impressionado com o primeiro filme, bem como da companhia Laurel Group, da qual participava Richard P. Rubinstein, o típico executivo americano que cativou Romero com seus cheques e que deteve, a partir de então, a maior parte dos direitos autorais sobre suas personagens - hoje divididos entre incontáveis executivos, entre eles, ainda, o próprio Rubinstein, que fez, há algum tempo, uma refilmagem absolutamente tenebrosa de Dia dos mortos, com direção de Steve Miner, o mesmo realizador do segundo capítulo de Sexta-feira 13. Resta dizer que os parceiros de Romero no primeiro filme praticamente sumirão dos cinemas nos próximos anos, com escassíssimas participações, e que o diretor nova-iorquino irá se queixar de que filmes como O despertar dos mortos, Dia dos mortos e Terra dos mortos foram finalizados com apenas metade de sua direção criativa. Eis porque A noite dos mortos-vivos é uma obra-prima simples e eficiente: não esteve sob responsabilidade de dólares ou com a incumbência de faturar alto no mercado cinematográfico, deixando seu criador à vontade para explorar as possibilidades de significação de sua linguagem fílmica.

Antes de O despertar dos mortos Romero realizou quatro filmes, mas apenas There's always vanilla, de 1971, teve produção total da Image Ten. Hungry Wives, de 1972, teve co-produção de Gary Streiner, irmão de Russell Streiner e colaborador da Imagen Ten. A parceria com Richard P. Rubinstein começará em 1977, com Martin. No ano seguinte, após muitos contatos para financiamento e um certo receio de Romero em não conseguir criar um filme, mas apenas atender ao apelo de fãs e de engravatados, surge O despertar dos mortos. A essa altura as plateias já conheciam o gore: obras como O massacre da serra elétrica (The Texas chainsaw massacre, 1974), de Tobe Hooper, familiarizaram o público com um terror mais visual que conceitual - e fizeram sucesso -, levando os executivos a exigirem de Romero que sua violência não fosse apenas sugestão de conceitos extravisuais. Talvez o cineasta já desejasse exprimir momentos com imagens mais grotescas, mas não há dúvida de que a maneira de realizar esses momentos era mais sofisticada do que a indústria lhe exigia - e é possível que, no fim das contas, ele tenha alcançado algo muito próximo disso, mas sem mais o mesmo efeito de pavor que A noite dos mortos-vivos provocara, muito em função da opção pela utilização das cores. Para agradar gregos e troianos, convocou Tom Savini, um maquiador em ascensão que irá inovar processos envolvendo técnicas de maquiagem - algo que chegará a seu ápice somente em 1981, com o trabalho de Rick Baker em Um lobisomem americano em Londres, e que não deixa de ser um mero escrachamento técnico, tipicamente vinculável a proposições cinematográficas norte-americanistas - para citar um exemplo em que maquiagem faz muito pouca diferença, lembremos A noite dos mortos-vivos.

1978, assim como fora 1968, constituiu um momento especial para a modernidade norte-americana: uma época marcada pela desilusão sociopolítica ocidental e, ao mesmo tempo, um certo tipo de renascimento - agora não mais sob o emblema da Antiguidade, mas através do capitalismo high tech, cujo ápice será a invenção do computador e da internet. Os Estados Unidos tinham, agora, um novo profeta, que tomara o lugar de Luther King: John Lennon, assassinado em 80. A malfadada Guerra do Vietnã terminara em 75, mas havia deixado a sociedade americana quase que desesperadamente inquieta. Tentativas políticas questionáveis foram empreendidas no sentido de conter os ânimos. A principal foi, em termos gerais e eufemísticos, domesticar um conforto e precisamente protegê-lo de asperezas (vide A conquista da honra, de Clint Eastwood). Logo, beneficiou-se quem podia, ou seja, uma elite. Essa atitude política e cultural foi duramente combatida pelos movimentos da contracultura dos anos sessenta. George A. Romero surgiu como cineasta nesse meio, e A noite dos mortos-vivos tinha sido a sua reflexão sobre um de seus momentos. Agora, mais uma vez, Romero não poderia deixar de contraculturalmente refletir mais uma vez e emitir seu sarcasmo sobre a hipnotizante e analgésica sublimação que o capitalismo começava a oferecer aos americanos desiludidos, sobretudo através dos shoppings centers, entre tantos outros mecanismos (consolidação da Coca-Cola, rede McDonald's, Hollywood, Walt Disney, ufanismo, etc.). "O que eu faço com os problemas? Deixo de pensar neles. Como eu deixo de pensar neles? Ocupando o pensamento com fixações de outra ordem emotiva". O capitalismo oferecia uma fixação que satisfazia a busca humana por um poder: comprando e vendendo eu consigo me pensar e sentir acima de uma média considerada acesso à infelicidade. Esse lema subliminar do capitalismo George A. Romero compreendeu e brilhantemente ironizou em O despertar dos mortos, uma das obras cinematográficas mais geniais sobre a revalorização de um mundo imaginado pelo e com o dinheiro - um mundo com uma nova aristocracia, agora sob o signo de toda uma nação.



Nascido cineasta em uma contracultura cuja veemência foi mais forte em meio ao black people, Romero não poderia deixar de ter o protagonismo heróico de seu filme mais uma vez em um ator negro: Ken Foree, que interpreta Peter, um soldado da swat, força de contenção especial da polícia norte-americana, que se alia a Roger (Scott H. Reiniger, ironicamente germânico), outro soldado, em meio ao caos que a propagação de um misterioso surto zumbi começa a gerar. Os eventos desse filme, embora retratados dez anos após A noite dos mortos-vivos, passam-se quase que imediatamente após o evento específico do primeiro filme. Roger é conhecido de Stephen (David Emge), que trabalha como piloto de helicóptero para uma rede de televisão.  Stephen, por seu turno, tem um relacionamento amoroso com Francine (Gaylen Ross), uma das funcionárias de rede. Assim será constituída a ligação do quarteto de protagonistas que buscará sobreviver ao aparente apocalipse, que traz os mortos de volta à vida e que é explicado religiosamente: quando não houver mais lugar no inferno, os mortos voltarão a andar sobre a terra (alguém lembrou do período mais negro da Idade Média?).



Interessante que virá justamente dos dois núcleos sociais que Romero mais critica, a mídia e a polícia, a representação de uma tentativa de sobrevivência nos moldes de "cada um por si" (em nenhum momento haverá ênfase em uma atitude coletivizada de reversão situacional, ou mesmo uma busca por colaboração coletiva, embora sejam exatamente nesses dois núcleos que uma esperança seja depositada: os protagonistas comportam-se como qualquer sujeito que esconde-se, esperando de outros uma solução, e, por isso, colaboram para o alastramento do caos). Esses dois núcleos envolvem, respectivamente, comunicação e busca por informações e segurança, aspectos imbricados. O primeiro apenas colabora com a desolação do momento, ao não oferecer nenhum tipo de razão para o restabelecimento da ordem: argumentam atribuladamente a partir dos dados informativos e não chegam a um entendimento em seu próprio local de trabalho, dividindo-se e instaurando conflitos nos mais diversos âmbitos: religiosos, científicos e humanísticos. Uma guerrilha midiática em que concorrem não as instituições, mas os próprios seres. Um caos, afinal.

A polícia, por outro lado, será ainda mais duramente criticada por Romero. A célula que a dramatiza não inicia por uma tentativa de contenção à crescente ameaça zumbi: isso ocorre indiretamente e é assustadoramente caótica. Policiais da swat invadem um conjunto de apartamentos em suposto bairro pobre atrás de criminosos latinos que provavelmente utilizaram-se da situação para cometer delitos. Trata-se de um residencial de imigrantes. Romero é ainda mais veemente em seu sarcasmo crítico quando filma um policial racista ensandecido estourando miolos à revelia com sua escopeta. Mas o brilhantismo virá depois: o policial é morto por um de seus colegas de profissão, Peter, o negro, que, numa inexplicável atitude, solicita confidência ao companheiro que ao assassinato assistiu, Roger. Será esse o elo absurdo que unirá Peter e Roger e, mais tarde, Peter, Roger, Stephen e Francine. Absurdo, claro, no sentido de que nós, espectadores, que assistimos A noite dos mortos-vivos e compreendemos a situação geral mais claramente que suas personagens, não temos quase nenhuma referência direta de alguma coisa que valide a ação de Peter numa relação objetiva para com o restabelecimento de uma ordem geral e menos circunstancial. Eis aí o verdadeiro horror romeriano: num caos, o absurdo consegue ser monótono.



Toda a situação de horror que os núcleos midiáticos e policiais agravam tende a piorar quando ambos encontram-se para fugir do caos através do helicóptero que Stephen pilota. Mais curioso, porém, e é nesses momentos breves que a genialidade de Romero costuma operar, é que a fuga é conscientemente não legitimizada pelas personagens: todos, ou, principalmente, os policiais, configuram a atitude como um roubo. Abandonando-se à sorte da viagem aérea, procuram não mais que simplesmente estar fora do alcance da desordem, de maneira conscientemente ilegal, encontrando, no caminho, um shopping center, local que inspecionarão para, num primeiro momento, refugiarem-se, mas que, em seguida, oferecerá mais que um refúgio, mas uma reprodução dos mecanismos institucionais e culturais imediatistas que faziam parte do mundo antes do apocalipse zumbi e que provavelmente não estavam ao seu alcance ou que não podiam ser prioridade existencial. Um mundo caprichoso e elegante. Um convite ao lúdico anestesiante, com requinte, cores, luzes artificiais e sons - e agora à disposição, enfim, daqueles que mais oniricamente o viviam, ou porque socialmente subjugados ou porque vítimas indiretas de tudo aquilo que a contracultura negou, embora jamais tenham absorvido existencialmente quaisquer de seus ideias. Capitalistas mascarados, portanto. Esse mundo, ou, melhor, essa ontologia moderna, Romero figurou brilhantemente através do talvez mais vigoroso argumento espacial que um cinema de horror já produziu em sua história, propício a desenvolver, sob um contexto político, social e cultural, todos os valores que um movimento cultural de toda uma época combateu, muitas vezes ofensivamente. Sem dúvidas o conceito mais genial da cinematografia de George A. Romero é o shopping-mundo de O despertar dos mortos.



O que falar daqui em diante, quando os protagonistas enfim cristalizam uma existência em meio à fortaleza consoladora do shopping? Não querendo espichar ainda mais o texto, resta comentar brevemente um ou outro aspecto em meio aos muitos possíveis de serem estudados. Primeiro: os mortos-vivos não são zumbis. Não para o enredo nuclear do filme. Ou melhor, são zumbis, mas como costumamos chamar aquelas pessoas que se dedicam a praticar despropositadamente o capitalismo. Romero não faz questão de disfarçar sua crítica quando confunde seus living deads com manequins em lojas de roupas, ou mesmo seus protagonistas. Reparem que há diversas cenas com esses manequins, alguns em takes fechados. Provavelmente não há ninguém que em algum instante não tenha rapidamente confundido a imagem, não sabendo se era um living dead, um protagonista ou um manequim. Segundo: há uma curiosa cena em que Peter, ao encher os bolsos com o dinheiro dos caixas da agência bancária do shopping, comenta: "Nunca se sabe". Realmente, enfatiza Romero, o escapismo que o dinheiro proporciona é problematicamente ilusório - dinheiro é mais que dinheiro, é uma entidade com poder próprio revolucionário. Terceiro: a cena talvez mais contundente, como aquela que encerra A noite dos mortos-vivos. Stephen quer pedir Francine, que está grávida, em casamento. Para tanto, organiza, junto com Peter, um luxuoso jantar em um dos restaurantes do shopping. Para servi-los como garçom, eis Peter, o negro, que, convidado a fazer parte do momento, recusa-se argumentando: "Não, isso é só para vocês", e retira-se para beber solitariamente um champagne, bebida típíca das comemorações. Ora, mas o que Peter comemora? Romero responde, ironicamente, nas entrelinhas: não é Peter quem comemora. A grande comemoração é a instituição definitiva de um mundo  podre sempre prestes a ruir ou levar as pessoas à ruína - o que acabará acontecendo, no filme, logo em seguida. Por essas e outras que, repito, decidi escrever sobre George A. Romero. Quem mais construiria tamanho sarcasmo quando lá fora espreita o que muitos esperam ser o único e exclusivo mote do enredo e, além disso, uma razão especial para as mais apavorantes preocupações? Romero não filma zumbis, filma gente. Filma seu tempo, que continua a ser o nosso.

O pior é saber que Romero não está sendo cínico: ele tem toda a razão - ou não tem?




Próximo estudo romeriano: Dia dos mortos (Day of the dead, 1985), sem previsão.




2 comentários:

  1. Olá,

    Fantástico o seu texto.

    Só para lhe dar água na boca, acabei de assistir Survival of the dead. Baixei-o da internet em boa qualidade. Se quiser o link, te passo ele.

    Vou deixar você curioso. No Survival, Romero faz algo nunca antes visto em nenhum de seus filmes.

    Gostei muito do filme. Muito mesmo.

    Abraços.

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  2. Oi, Jorge. Fico feliz que você gostou. Ainda não assisti "Survival", estou esperando ser comercializado. Um abraço.

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