domingo, 11 de julho de 2010

O céu sobre o mundo: Wim Wenders e a fenomenologia da vida*



“Eu agora sei o que nenhum anjo sabe”. Eis o que conclui, ao final da projeção, o anjo Damiel, em Asas do desejo (Der himmel über Berlin, 1987), filme dirigido pelo alemão Wim Wenders. O verbo de sua reflexão final é “saber”: Damiel, antes anjo, agora humano, ou, ex-anjo “caído”, finalmente compreende como qualidade a máxima de existir: saber é viver. Enlevado pelo amor e pela ternura, Damiel deixa-se encarnar por um Eros hesiódico primordial, e amará não somente a figura feminina que lhe insuflou, numa erotização lírica e sublime, o ânimo da experienciação humana, mas todo e qualquer aspecto mais ou menos particular da vida, como, por exemplo, o prazer de beber um simples copo de café. E tudo ocorrerá de um modo plenamente inaugural e, por isso, repleto de entusiasmo – que, conforme a raiz latina, significa “ter Deus dentro de si”.
 
As proposições conceituais fílmicas de Wenders delinear-se-ão em uma Berlim dos anos oitenta, alguns anos antes da emblemática queda do muro que separava a Alemanha Oriental da Ocidental geografica, politica e ideologicamente. Nesse espaço, de certa forma universalizado, como convém à cinematografia do diretor, anjos observam imparcialmente o dia a dia dos habitantes e ouvem atentamente seus pensamentos. Não parecem pretender algo mais que observar e ouvir, embora ofereçam silenciosamente uma espécie de conforto ou de esperança às pessoas. Dois anjos são destacados pelas lentes do cineasta: Damiel (Bruno Ganz, em performance excepcional) e Cassiel (Otto Sander). Ao final de cada dia, encontram-se e conversam sobre o que viram e/ou ouviram. As imagens convidam o espectador a comungar reflexivamente com sua poética da contemplação, quase que deflagrando uma oração – e irão operar, através da personagem de Ganz, o que chamaremos de inversão transcendental, ou, uma potencialização epifânica de sentido inverso, como que engendrando uma fenomenologia da carne em consagração a todos os sentidos da vida humana.
 
Damiel é, ao longo do filme, o emblema poético para a ode visual que Wenders elaborará acerca de uma potencialização transcendental em aspectos da existência humana menos consagrados pelo logos tradicional, ou obscurecidos em detrimento de um passado nefando. O anjo sinalizará, com toda a ternura de sua sutileza contemplativa, por uma experienciação para além da angelical, especialmente quando encontra Marion (Solveig Dommartin), uma acrobata circense que aos poucos lhe incute um especial encantamento pelo gênero humano. Através dela e de outras pessoas e situações, numa confluência que se subentende de longa data, vislumbrará epifanicamente a experienciação de sensações que não estão ao seu alcance. Sua constituição angelical lhe impõe conhecer apenas através da voz do pensamento humano certos aspectos inapreensíveis que envolvem o corpo e o que chamamos alma. O propósito de viver, sofrer, sentir e pensar como humano será carinhosamente desenhado pelo vigor lírico que cada gesto, corpóreo ou reflexivo, amorosamente emanará dos contornos audiovisuais presentes no percurso etéreo de Damiel. O anjo, então, será enlevado por uma espécie de epifania inversa, cuja realização, em termos mais concretos e menos contemplativos, só poderá ser possível, como crê, a partir “do outro lado”, tomando à luz de uma vida inexorável observações que singelamente colheu, enquanto anjo, acerca do saber e do existir sob o viés da humanidade.
 
Contudo, seria essa experienciação advinda de um intrínseco desejo de Damiel, como o título nacional sugere ? É possível que sim, mas, pensando em “desejo” como um princípio psíquico materialmente inapreensível à transcendência tão somente contemplativa dos anjos de Wenders, surgem elementos que problematizam uma concepção como tal: psique envolve mente, e mente é uma constituição racional humana. Logo o real conhecimento da experienciação e o entendimento para com desejar alguma coisa só são compreendidos quando ontologicamente ocorre o deslocamento da natureza de Damiel: saber é, afinal, viver, e viver é uma qualidade humana. Antes o que se lhe desvela é absolutamente lírico, como uma profunda nota musical de origem intangível – e continuará sendo, mas, desta vez, sob uma consciência epifânica que se instala existencialmente através dos aspectos mais singelos do humano, que vão desde a menor vivenciação sensorial e corpórea possível até situações relativamente mais complexas, como a procura pelo par amoroso, cuja localização, antes instantânea, agora precisa ser pressuposta. Em outras palavras, Damiel vive fenomenicamente uma inauguração existencial cujo sentido, consagrado por Eros, será o amor e a comunhão amorosa com Marion, nos mais indeléveis termos que restaram de sua memória angelical. Um certo pragmatismo carnal lhe repercute epifanicamente quando um corpo, com todos os seus sentidos, começa a existir, levando-o a conhecimentos que, enquanto anjo, não podia mensurar sensitivamente. Só assim ele poderá ser transcendentalmente consciente – e, então, saber.
 
Wenders propõe, com sua reflexão lírico-fílmica, através da renúncia de Damiel à sua condição angelical em função de um (re)descobrimento existencial como humano, uma possibilidade transcendental de vivenciação sob os mais (ir)restritos e simples termos. Entre eles, o amor. O filme renova um processo fenomenológico de conhecimento para com a realidade da existência humana, fazendo com que o macrocosmo, entendido religiosamente como onipotente, alcance a plenitude através do microcosmo, em pequenas mas substanciais alegorias do entusiasmo. Para Wenders, que dedica seu longa a “ex-anjos”, Yasujiro Ozu, François Truffaut e Andrei Tarkovsky, todos poetas da imagem humana, não poderia haver melhor alegoria para revitalizar um povo que ainda sentia as consequências de uma guerra que o devastara - e talvez ainda nem previsse que os muros erguidos naquela ocasião finalmente seriam derrubados para, enfim, libertá-lo. Um belíssimo ensaio sobre a humanidade. Uma obra-prima sobre o mundo.

* Texto produzido para a disciplina Seminários de Cinema, ministrada pelo Prof. Dr. Josmar Reyes, do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul.

Nenhum comentário:

Postar um comentário