segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Um mestre do suspense

Billy Wilder adorava as loiras. Howard Hawks disse que os homens as preferiam. No entanto, foi Hitchcock quem as amou de verdade. Não obstante, como as fez sofrer!

Domingo recente assisti novamente Os pássaros (The birds, 1963), de Alfred Hitchcock, o que seguidamente faço com a filmografia do diretor londrino. No dia seguinte, L. F. Verissimo recuperou, em crônica, o filme, relacionado-o com o misterioso episódio em que pássaros e peixes foram quase que simultaneamente encontrados mortos, às centenas, nos Estados Unidos e em outros lugares, inclusive no Brasil. No longa, diversas espécies de pássaros tornam-se hostis e passam a atacar, aparentemente sem nenhuma razão, os moradores de Bodega Bay, na costa californiana, e arredores. Contra-ataque da Natureza? Óbvia hipótese. Na verdade, não há explicação. Hitchcock descortina seu suspense fundamentando-o pela sempre perturbadora reticência. Nesse sentido, geralmente emudece o espectador mais eloquente e consegue de seu cinema uma experiência imaginativa por estímulo de subterfúgios que o próprio diretor adora sabotar, negligenciar ou fingir. Hitchcock soube como poucos considerar as mentes inquietas de seus espectadores. É o grande mestre do suspense. Vez ou outra conseguiu ir além, como em Janela indiscreta (Rear window, 1954), fazendo os olhares espiões de sua plateia colherem informações cruciais que escapam do protagonista. É você, então, que passa a ser confrontado. É você o voyeur. É você quem se sentirá pouco a pouco seduzido por ambiguidades, como numa tentativa derradeira dos acusados para encobrirem, de você, o crime. Narrador brilhante e formidável técnico-artista, não é por menos que Hitchcock aparece com vários filmes na respeitável lista das cem melhores produções de todos os tempos que a Cahiers du cinéma publica a cada dez anos.

Em Os pássaros, os ataques em Bodega Bay coincidem com a chegada ao local de Melanie Daniels (Tippi Heddren, revelada, nesse filme, por Hitchcock, e que voltaria a ser dirigida pelo cineasta no ano seguinte, em Marnie, ao lado de Sean Connery; também é mãe da atriz Melanie Griffith, cujo nome suponho ter sido escolhido em homenagem ao grande papel que o diretor lhe confiou). Melanie-Tippi é loira, como tinha que ser, afinal há sempre uma loira emblemática no cinema de Hitchcock. Muito emblemática. Na sempre curiosa cena de aparição do diretor, por exemplo, Melanie entra em uma loja de passarinhos, ao mesmo tempo que Hitchcock deixa o mesmo local, levando, pela coleira, dois cãezinhos. Fluxos contrários que se cruzam, num movimento narrativo em que um deles sabotará o outro, típico na cinematografia hitchcockiana. Mais: aparentemente não há cães à venda na loja. As cortinas do show de Hitchcock são sempre abertas sem grandes avisos, mas com intrigante impacto.

Na loja, uma isca. Melanie encontra Mitch Brenner (o galã Rod Taylor) e, ao que tudo indica, o primeiro ramo de enredo encenará uma inusitada história de amor entre eles. Papo furado. Hitchcock não é nada idílico. Em uma película hitchcockiana, a felicidade é quase sempre elemento estranho. É sempre promessa de um amanhã ou presença fragmentada de um ontem. Para Hitchcock, há uma poderosa força que obstrui a plenitude do agora: a circunstância. Diante dela, pouco pode ser feito além de reviver o que já se encontra distante ou sonhar com o que fica cada vez mais distante.

Ao chegar em Bodega Bay para reencontrar Mitch, Melanie desloca aquela comunidade interiorana de seu status quo. É mais que um barco estrangeiro que ali atraca: é um vendaval que promete realinhar a dinâmica náutica das velas que assentaram calmaria em seu porto - e que não conseguirá ser passageiro. A felicidade ganhará magnífico prenúncio quando os caminhos de Melanie e Mitch novamente se cruzarem, mas Hitchcock aos poucos desvelará os engodos narrativos. O primeiro ataque de uma gaivota dispersará em longínquo plano o que se prometia colóquio amoroso. A partir daí, Melanie participará da trama como emblema de uma tragédia, embora seja, no fundo, a primeira e maior de todas as vítimas. Hitchcock a ama. Seu mundo, não.

Com fotografia do excelente Robert Burks e edição de George Tomasini, habituais parceiros do mestre, Os pássaros é o filme mais caótico de Hitchcock. A imagem final assusta pela premissa sombria. O filme encerra do modo como Hitchcock mais gostava: subitamente, sem mais para dizer. Não há pior sensação do que não ter as reconfortantes artimanhas do verbo diante de uma situação perturbadora. No cinema hitchcockiano, a esperança provoca arrepio. Bem sabia o mestre que seria nela que os espectadores procurariam alívio. Mais uma vez, porém, como gostava, não permitiu que ela respirasse sem a poluição do engano. Obra-prima.

Detalhe: quem puder, não deixe de conferir o trailer da película, sensacional e imperdível, como em todos os seus filmes.



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