segunda-feira, 30 de maio de 2011

Notas sobre o Festival de Cannes 2011

A sexagésima quarta edição do Festival de Cannes encerrou, há uma semana atrás, no dia 22 de maio, e algo foi reiterado, muito naturalmente: todas as aclamações, ou todo o evento de aclamação, giram em torno daquele ponto de fronteira em que os vizinhos costumam conviver não sem um embate. Cannes tem polêmica, crítica, saia justa, vitrine, comércio, dinheiro, especulação, conflito, eloquência, pessoas, culturas. Tentemos ser mais objetivos: qualquer lugar do planeta pode levar seu filme até Cannes, desde que atendendo a certas prerrogativas, tais como qualidade  - que deve ser reconhecida por algum grupo conhecido (quase sempre francês) e é muito variável - e/ou quantidade - o que significa ter boa publicidade e boa capacidade de tornar-se simbólico. Reunir o que pode existir de mais diferente e desigual é provocar rupturas com conceitos tradicionais. Cannes faz isso. Além disso, a Palma de Ouro e todos os seus prêmios angariam prestígio universal, porque o próprio festival viceja o símbolo da universalidade. Logo, é favorável ser aclamado por ele. Na verdade, é o desejo de todos os criadores.

O que aconteceu nesta mais recente edição do festival foi uma crítica pegajosa a uma possibilidade de Cannes estar se configurando como um Oscar fora do território norte-americano. Não só porque o júri principal foi presidido por Robert de Niro, que não atravessa uma fase digna de justificar um convite de encabeçamento na mesa diretora mais prestigiada do cinema mundial, mas porque o filme escolhido para receber a Palma de Ouro era, também, norte-americano: A árvore da vida, de Terrence Malick. No fundo, imagino que a associação territorialista foi coligida desde a premiére do longa, que dividiu opiniões. Os que não gostaram do filme justificaram sua avaliação ou porque parecia muito com 2001, de Stanley Kubrick, ou porque reduziu consideravelmente a participação de seu ator mais imponente: Sean Penn. Os que gostaram disseram que era obra-prima. Nos becos dos verbos, entretanto, de ambos os lados, o trabalho artístico de Malick foi irretocado, o que não deixa de ser um princípio para invalidar todas as críticas negativas.

2001 foi concluído e apresentado no controverso ano de 1968. Terrence Malick começou de fato sua carreira em 1969, escrevendo e dirigindo um curta chamado Lanton mills (Os moinhos de Lanton). Seu primeiro longa, Terra de ninguém (Badlands), chegou em 1973, época em que, segundo o cineasta, a ideia de A árvore da vida começou a ser germinada. Das datas surge a hipótese da influência de Malick por Kubrick. Mas, enfim, qual o problema? O problema é terem dito que a nova produção de Malick é de certa forma cópia descarada de 2001. Não vi o filme, ainda, e por isso pouco posso ou devo comentar. Só posso dizer sobre as linhas que li através do trailer, e nada me fez sequer lembrar de Kubrick, mas sim da própria cinebiografia de Malick. Os dois diretores são, de alguma forma, muito parecidos, e, de alguma forma, muito diferentes. Malick é o cineasta das coisas do mundo. Kubrick é o cineasta do mundo das coisas. Às vezes, essas estéticas contrastam, mas em confluência. E daí? Isso é ótimo; é arte. Vamos invalidar todos os que de alguma forma têm pelo menos uma parte de suas criações lá em Homero? E se Homero tiver pelo menos parte de sua criação em um outro alguém, começaremos a vaiá-lo?

De qualquer forma, achei justa a decisão do júri. Malick é um cineasta muito especial, muito diferente e muito bom. É a cara de Cannes - ou pelo menos de um símbolo que Cannes carrega. No mais, o prêmio de melhor diretor ficou com o dinamarquês Nicolas Winding Refn, pelo elogiadíssimo Drive. Como melhor ator ganhou o francês Jean Dujardin, por sua atuação em The artist, de Michel Hazanavicius, e a melhor atriz foi, um tanto surpreendentemente, a norte-americana Kirsten Dunst (isso mesmo, a Mary Jane de Homem-aranha), pela protagonista de Melancholia, do inconveniente Lars von Trier. Von Trier, aliás, é mestre em premiar atrizes em Cannes, além de ser mestre em dizer, a cada edição, alguma bobagem ou egocêntrica ou estúpida. É um publicitário da inconveniência. O que o irrita é que seu atestado de inteligência tem cada vez mais uma única assinatura: a sua própria. Por fim, o prêmio de melhor roteiro foi entregue ao ótimo cineasta nova-iorquino naturalizado israelense Joseph Cedar, por Hearat shulayim, e o prêmio do júri popular foi para Polisse, da diretora francesa Maïwenn le Besco.

3 comentários:

  1. Apreciei muito teu comentário. Vê-se que entendes da coisa e que lês sobre a coisa. Mestre das coisas cinematográficas ou mestre da cinematografia das coisas? Revi 'O Estado das Coisas', do meu amado Win Wenders, mas não consegui suportá-lo, pelo nível de ansiedade produzido. Vi, pela primeira vez, o "Clamor do sexo", de Elia Kazan, quase da minha idade, e o admirei pela abordagem da temática. Um abraço!

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  2. Rô, você vai ter que me perdoar: não assisti a nenhum desses filmes que você citou - por enquanto -, apesar de gostar demais de Wenders e de já ter também admirado Kazan. Quanto à polêmica que surgiu em Cannes, com a comparação entre Malick e Kubrick, penso que esse é um assunto que pode ser aprofundado e que renderia um bom estudo. No fim, achei a analogia uma ótima sacada. Os dois diretores são realmente muito parecidos. O que noto em Kubrick é, como você refletiu muito bem, uma cinematografia sobre as coisas, geralmente feita com enorme técnica. Em Malick, percebo as coisas cinematografadas. Mas, na verdade, as duas coisas se encontram e se misturam no cinema deles. A rigor, a maior semelhança que vejo é o cuidado estético com a obra. Nesse quesito, os dois estão entre os maiores.

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  3. Você esqueceu de falar que foi a ultima vez e o Lars Von Trier criou alguma polêmica em Cannes.

    Assisti ao Amantes algumas semanas atrás, lembrei de você. Incrível o filme.

    Sobre Malick, ainda não assisti ao filme, mas só o trailer já mexe muito comigo.

    Abraços

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