(Re)assisti ontem ao longa Dias de paraíso (Days of
heaven, 1978), escrito e dirigido por Terrence Malick. O filme foi agora relançado
no Brasil, em celebração ao centenário da Paramount Pictures, com título mais
apropriado ao original (antes era conhecido como Cinzas do paraíso). Por esse trabalho, o cineasta norte-americano
recebeu, em 1979, o prêmio de melhor diretor em Cannes, e o cinematógrafo espanhol
Nestor Almendros (falecido em 1992) foi agraciado com um Oscar. Todos os elementos que integram Dias de paraíso merecem ser destacados: a música,
composta por Ennio Morricone, que está entre as mais belas que o maestro
italiano já escreveu; a direção de arte, assinada por Jack Fisk, parceiro de
Malick em todos os seus (cinco) filmes até hoje; a edição, de Billy Weber, que
permaneceu dois anos debatendo com Malick a montagem da (sempre complexa)
narrativa fílmica malickiana, e, claro, a fotografia, de Almendros.
Minha opinião não especializada é de que Malick filma
momentos que se expressem por si mesmos (na maior parte de seus filmes),
seguindo um projeto mais ou menos pré-determinado por um roteiro. Já li que os roteiros de Terrence Malick são praticamente poemas (Sean Penn declarou que o roteiro de A árvore da vida era o mais belo que já havia lido). Se assim for, e é o que parece, os
atores precisam compreender que são eu-líricos. O filme em si,
enquanto está sendo filmado, é uma imagem de uma repercussão poética. Na
sala de montagem, durante a pós-produção, é que uma narrativa será tecida, mas
Malick parece conceber a narrativa mais como uma contemplação do que como uma
leitura (é aí, então, que imagino que entre em cena o filósofo, ao modo de Tarkovski, Bergman, etc.). Assistir a um de seus filmes é mais uma ação psíquica que psicológica
(se é que isso possa ser dito e fazer sentido). Quero dizer que pensamos menos, ou nada. O que acontece, então? Mais ou menos o que aconteceu com aquele japonês que admirava Van Gogh em um dos contos do filme Sonhos, de Akira Kurosawa: imergimos naquilo que se apresenta, e ali fruímos vagarosamente o espanto, a fascinação e a felicidade.
Poderíamos dizer, então, que o cinema de Terrence Malick é uma das linguagens
mais puramente cinematográficas que existem? Acho que sim, e Dias de paraíso é exemplo disso.
A narrativa que chamamos de enredo é extremamente falha para
caracterizar a experiência de assistir ao filme. Bill (Richard Gere) mata um
companheiro de trabalho por desavença. Foge com sua pequena irmã Linda (Linda
Manz) e sua namorada Abby (Brooke Adams) para o interior do Texas. Lá
trabalharão colhendo trigo nos campos de um rico fazendeiro, interpretado por
Sam Shepard. Bill e Abby dizem-se irmãos, para não desencadear nenhum falatório
que possa levar à descoberta do crime que Bill cometera. O fazendeiro apaixona-se
por Abby. Bill quer se aproveitar dessa paixão e propõe que Abby ceda ao
fazendeiro, porque este sofre de doença fatal. Assim, ela herdará a riqueza e
todos viverão como reis. Todavia, a doença parece retroceder. E agora?
Entender o filme meramente por seu enredo é o mesmo que
definir a Guernica de Picasso como um
retrato da guerra civil espanhola e ponto. Em primeiro lugar, o único narrador
stricto sensu é uma criança cuja fala
é impressionista e é em off. As demais
personagens falam, também, mas tudo muito reticente - e muito pouco. O restante é elíptico.
Aliás, tudo o mais no filme são quadros em vez de verbo, ou as duas coisas juntas, formando outra linguagem (que é a do cinema). São versos, se preferirem chamar, feitos
com imagens expressionistas, que lembram em muito alguns trabalhos de Van Gogh,
como, por exemplo, O vinhedo vermelho.
Nesse sentido, o trabalho de Nestor Almendros é inacreditável. Disse o
cinematógrafo à época do lançamento: “Filmamos boa parte naquele momento entre
o entardecer e o anoitecer. São cerca de 25 minutos em que há luz, mas não há
sol”. Terminou que as filmagens demoraram horrores, mas o resultado foi
obra-prima (imitada seguidamente desde então). A luz do filme é tão impressionante que em vários momentos parece ter sido "pincelada". Semelhante técnica utilizara
Stanley Kubrick e o fotógrafo John Alcott no exuberante Barry Lyndon: imprimir uma estética de pintura à imagem
cinematográfica. Assistir a Dias de
paraíso é imaginar Van Gogh em movimento (há um quadro que Malick
costumeiramente faz da relva movimentando-se ao sabor do vento que me jogou
para dentro de um quadro expressionista), com um uso magistral da luz natural e
da sombra. Devemos absorver dessa luz, e das estações dessa luz, os dramas
íntimos, porque poucos momentos os expressam à moda convencional da narrativa
do tipo “contação de história”. Há também uma profunda relação entre a vida das
personagens e a vida das coisas que estão presentes à volta delas. Para o heideggeriano
Malick, Natureza e Ser estão umbilicalmente vinculados um ao outro. Há, por exemplo, a
tomada de um cálice de vinho no fundo de um rio que Bill deixa cair quando
percebe que Abby se apaixonou pelo fazendeiro. Há outra tomada, de dentro da
terra, do trigo germinando em direção ao sol, quando Bill parte e o amor de
Abby e do fazendeiro pode aflorar. Nada é “contado”, mas expressado, e quem expressa não são as personagens, mas o poeta. Terrence Malick é um legítimo autor de cinema.
Em 1978, ano em que Dias
de paraíso foi concluído, o cineasta divorciou-se de sua primeira
esposa, Jill Jakes. Em seguida, entrou em uma espécie de reclusão, voltando ao
cinema só em 1998, com Além da linha
vermelha, um ensaio ontológico sobre o ser e a guerra. Hoje Malick tem um filme em
pós-produção (sem título, ainda) e mais outros dois em desenvolvimento, além de
um documentário com as cenas excluídas de A
árvore da vida acerca do nascimento do mundo. Ao todo, foram apenas cinco
filmes lançados, desde 1973. Porém, cinco filmes extraordinários. Vale a pena
conferir.
Terrence Malick em rara fotografia no set de Dias de paraíso. |
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