terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

The hurt locker: um lugar onde há dor

É surpreendente, mas ao mesmo tempo compreensível, que um filme como Guerra ao terror (The hurt locker, 2008), dirigido por Kathryn Bigelow, tenha recebido nove indicações ao Oscar. É surpreendente porque não se trata de um típico filme americano. Entretanto, é compreensível porque, à medida em que a crítica especializada começou a elogiar o longa, os americanos passaram a reconsiderá-lo, com um novo olhar, julgando-o, assim, digno de prêmios.

A história em torno do longa-metragem revela o quão displicente os americanos são com os filmes que seu cinema produz fora dos circuitos comerciais. Para começar, Guerra ao terror foi finalizado em 2008. Sua carreira nos cinemas foi reduzida a algumas poucas salas e o tempo em que permaneceu em cartaz foi bastante curto. Isso porque produtores decidiram que o filme não atrairia público algum, tornando-se, portanto, indigno de quaisquer investimentos maiores no que concerne à sua distribuição. E tinham razão. Como se trata de uma produção atípica, muito embora seu conteúdo seja extremamente pertinente ao contexto da cultura americana, o público norte-americano simplesmente ignorou o filme, relegando-o à obscuridade. Em meados de 2009 o filme foi lançado no Brasil diretamente em DVD, e talvez só tenha chegado às prateleiras das vídeolocadoras porque o cartaz continha, em letras garrafais, os nomes de três atores conhecidos no circuito comercial: Guy Pearce, David Morse e Ralph Fiennes. Mesmo assim, era raro encontrá-lo locado. Somente agora, depois de receber inúmeros prêmios e de ser o preferido entre os críticos para receber o Oscar, Guerra ao terror é lançado nas salas de cinema do Brasil e relançado nos EUA, colhendo um merecido reconhecimento.

Mas não só os americanos rejeitam seu cinema alternativo, como também os brasileiros, que, rendendo-se às diretrizes americanas, chegam até mesmo a subverter a proposta fílmica. Em primeiro lugar, o título, absolutamente inapropriado, que conduz o leitor/espectador a uma falsa ideia, especialmente porque, embora o espaço fílmico seja um espaço em que um grande conflito se desenrole – a “guerra” de George W. Bush, que invadiu o Iraque pretensamente atrás de ameaças bélicas nucleares –, Guerra ao terror, ou melhor, The hurt locker, não é um filme de gênero. Tampouco faz qualquer apologia à conhecida propaganda americana de guerra ao “terror”. Em segundo lugar, os tais nomes mais conhecidos em destaque no cartaz do filme não passam de coadjuvantes de luxo, cujas participações são reduzidíssimas. Os verdadeiros protagonistas nem sequer foram lembrados pelos veículos de divulgação do longa. Pelo menos não até um deles começar a chamar a atenção: o desconhecido Jeremy Renner.

Renner, em uma performance surpreendente, interpreta o sargento William James, que lidera um grupo de campo composto por dois outros soldados. James é um especialista em desarmar bombas, e as tarefas do grupo resumem-se a atender ameaças envolvendo explosivos. A câmera irá, do início ao fim, acompanhar esse grupo no cumprimento de seu dever militar. Esse é o enredo do filme. Simples, num primeiro momento, mas a técnica que Bigelow empregou para costurar a tensão e a náusea em torno de sua narrativa fílmica tornam sua produção algo único no cinema recente dos EUA. Para começar, a câmera de Bigelow lembra, muitas vezes, a câmera de um Amos Gitai – renomado cineasta israelense. Com uma diferença: Gitai filma como se estivesse silenciosamente em meio às cenas. Seu olhar é o de alguém invisível em meio a algo aparentemente não merecedor de uma atenção, enquanto que o olhar que Bigelow propõe lembra o de um cinegrafista amador, com enquadramentos nervosos e foco no desenredar lento e pesado do núcleo das tensões.

O mais interessante, entretanto, – e é isso que aproxima o longa do cinema oriental – é que, para Bigelow, o contexto político não determina os contornos narrativos em nenhum momento, embora saibamos que ele está implícito. Há apenas uma política subjetiva, dada pelo próprio material humano, e não por forças superiores ou patrióticas. Portanto não espere dicotomias conceituais – o bem e o mal, como o péssimo título brasileiro sugere –, nem mesmo posicionamentos políticos advindos do narrador ou dos personagens, nem tampouco motivações intrínsecas ou reviravoltas épicas. Para Bigelow interessa o quadro suicida que envolve o trabalho do grupo e a maneira com que esse quadro repercute interna e silenciosamente nos personagens, especialmente nos dois soldados responsáveis pela retaguarda de James, já que a guerra, para o sargento, ou talvez a própria vida cotidiana, é um entorpecimento de todos os sentidos – como a epígrafe que abre o filme declara: “a guerra é uma droga”, sem que para isso seja necessário, de fato, o uso de quaisquer substâncias.


* Texto integral originalmente publicado no jornal Folha do Mate, em 20 de fevereiro de 2010.




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