terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Mia Couto: bênção e sonho da África



A África quase sempre está associada a um lugar-comum: continente selvagem, repleto de selvas, animais ferozes e povos ancestrais que nos fazem pensar nos habitantes mais primitivos do planeta. O cinema, por exemplo, muito contribuiu para que fizéssemos da África uma imagem em vários aspectos hostil. Quando somos apresentados a outras abordagens sobre o continente, vemos, por exemplo, tribos que dançam como em preparação para a guerra, esculturas e pinturas que projetam semblantes enegrecidos, músicas que soam como retumbantes trovões em batalha. Muito do que é transmitido da África não nos convida a uma relação afetiva, mas a um certo tipo de receio. A História também colaborou para uma imagem inquietante da África: legou-nos o conhecimento de inúmeras guerras civis, governos sangrentos, catástrofes epidêmicas, miséria, fome e exploração. Como se à África restassem migalhas de um mundo que a deixou aos corvos, e que apenas observa nela calamidades e aspectos culturais pouco convidativos, porque mensageiros de uma falsa aura de desumanidade. Quem lê o que subliminarmente a História legou à África, encontrará perene o traço de um suposto povo que esqueceu de desenvolver a fé na beleza de existir.


A África, todavia, está além da História. Se há alguma coisa que o continente perdeu ao longo dos inumeráveis anos de sua existência, foi a História. A África tornou-se mítica – como Tróia e suas areias onde pisaram gigantes. É com esse espírito que o escritor moçambicano Mia Couto nos devolve a África que realmente é terra, onde homens e mulheres caminham com suas estrelas, mesmo quando há guerra e mesmo quando a história política castiga o frescor das savanas com seus lúgubres contos de fadas. Mia Couto é um observador poético que honra os africanos com uma percepção que transforma a África nela mesma, como um rio de águas claras em que nadam seres mitológicos. E há muita coisa na África que pode ser ainda mais instigante que mil e uma noites. Através de sua literatura, nós, leitores, que tão longe estamos, podemos fazer a viagem que faltava dentro da África. Pelo menos em uma parte dela.


Sim, porque estamos falando de um escritor do Moçambique, ex-colônia portuguesa. Entretanto, parece-nos que Mia Couto vai além de seu próprio chão, porque sua literatura deflagra o que parece ser, definitivamente, a mítica do homem-áfrica: o homem cuja identidade é a própria terra. Duas de suas obras, Contos do nascer da terra e Estórias abensonhadas, expressam perfeitamente o ponto a que queremos chegar: uma África sem conspirações. Em seus contos vemos as pessoas mais comuns possíveis colocadas, muitas vezes, em meio a um contexto mágico. E quais são suas reações? Jamais de espanto. O ser do homem da África flui naturalmente em contextos fantásticos, como a água, porque em sua cultura o mágico não está separado por uma racionalidade. O mágico é a pulsação da terra. Mesmo quando há a infiltração de uma sugestão à realidade política do Moçambique, Mia Couto a coloca como se, esta sim, fosse estrangeira à terra. O africano, de fato, está além. Perspicaz manejador das palavras, o autor enreda o leitor em uma teia afetiva com sua arquitetura poética e sua verbalização mítica. Mia Couto sabe como dar às palavras a textura dos quatro elementos: o ar, o fogo, a terra, e a água. E estão lá, todos os quatro, muitas vezes imbricados. Porque Mia Couto vê na África um lugar extremamente orgânico, em que todas as coisas pulsam, em que todas as coisas vibram tanto quanto os próprios homens. E é essa a sua maior riqueza: fazer a África falar de dentro dela mesma.




Como já antecipa o título, Contos do nascer da terra nos faz lembrar de um folclore desaparecido do contexto em que o leitor está. Talvez por isso haja, de início, algum estranhamento. Todavia, logo nos damos conta que estamos diante de uma mítica, não de um folclore. E que precisamos, já que estamos tão distantes, estabelecer, muitas vezes, o pacto de uma criança: brincar com as imagens. Mia Couto gosta de diversão. Personagens peculiares como Jesuzinho da Graça, Justinho Salomão e o “velho tuga” nos mostram toda a irreverência da África. Diante de situações por vezes embaraçosas, os personagens propõem soluções que, paradoxalmente à nossa realidade, as desembaraçam sem nunca se oporem a elas. São personagens de água. O nascer da terra é alimentado por nascentes cristalinas: os próprios africanos. Em Estórias abensonhadas, mesma coisa. África e sonho no sumidouro do espelho ou elementos de uma mesma essência? Talvez até mais do que isso, e não conseguiríamos utilizar uma palavra que não fosse um neologismo do próprio Mia Couto: África abensonhada. Felizbento e Joãotónio, embora abensonhados, não deixam de carregar uma cor de esperança, como se o africano – porque afinal de contas também é humano – esperasse algo de sua terra. E esse algo, que pode ser o fim de todos os males, é esperado magicamente. É possível que aí esteja uma lágrima de Mia Couto: é impossível fazer com que a África seja, para os outros povos e talvez para si mesma, mais que uma oportunidade duvidosa de conseguir alguma coisa melhor. E é possível que esteja nesse ponto uma bênção, porque só resta espaço para sonhar. Em Contos do nascer da terra, lemos, por exemplo, a história da “menina sem palavras”. O que a demove da atitude de cancelar a fala é justamente a necessidade de imaginar com a voz. Se por um lado parece triste nos depararmos com um povo que se imagina, por outro lado isso os torna fortes num aspecto em que o leitor não tem tanta força. E isso comove. Mia Couto é o autor da comoção poética. O poético foi o único lugar encontrado pelo autor para conseguir expressar o sentimento africano. E somente neologismos poderiam expressar situações que se impregnam de tantos elementos. O lugar da literatura de Mia Couto é sempre abensonhado. Se há alguma ameaça estrangeira, ela fortalece o sonho, produzindo uma imagem contrária à que foi projetada sobre a África: o continente não é, nem nunca será, um lugar de desumanidade. E que Deus abensonhe que também não seja de desprezo.




A África está, de fato, além da História. É o lugar mítico em que os seres convergem para o sonho como os elementos convergem na Natureza. Mia Couto vê sua terra dessa forma. Ele é um olhar de dentro. É um olhar poético, oceânico e bem-humorado. Contudo, resta salientar um único aspecto negativo em suas obras: as páginas de seus contos terminam.



* Artigo originalmente produzido para a disciplina Literatura Africana de Expressão Portuguesa, ministrada pela Profª. Sônia Luz, na Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

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