segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sobre o Cavalo de Troia. Cavalo?

Artigo publicado na coluna "Universo das Letras", do jornal Gazeta do Sul, na edição de 14-15 de julho.



No oitavo canto da Odisseia, de Homero, Demódoco, aedo da corte dos feácios, narra um dos mais célebres episódios da guerra que houvera entre gregos e troianos: o do cavalo. Para relembrá-lo, mas com outro verniz interpretativo, convido a uma leitura do poema "Dúvida histórica", de Marina Colasanti, publicado em 2009, pela Record, no livro Passageira em trânsito.

          Diz Montale que se estava apertado
          no ventre do Cavalo de Troia
          uns contra os outros como sardinha em lata.
          E eu me pergunto se teriam
          os de Ulisses
          esculpido conspícuos testículos e
          um membro no seu histórico equino
          para melhor burlar os inimigos.
          Pois não era cavalo
          o que deixaram
          como presente fosse
          frente à porta.
          Sob seu duplo disfarce, era uma égua
          que à noite
          na solidão silente entre muralhas
          lhes pariu uma ninhada
          de assassinos.

O golpe helênico que trouxe a derrota aos troianos foi antológico. (Devemos creditar os louros da vitória, em grande parte, a Atena, que inspirou o embuste). A vitória grega na lendária campanha na Ásia é um dos mais avassaladores triunfos guerreiros da literatura. Homero refere os troianos como "domadores de cavalos", um povo que cultivava ancestralmente esses animais e os ostentava como patrimônio singular e privilegiado. Mesmo assim, e justamente por isso, foram severamente arruinados pelos helenos, porque o garanhão monumental que acreditavam estar recebendo tinha, na verdade, um útero! É de se imaginar, entre os gregos, ocultos nas praias troianas, exclamações as mais escarnecidas quando seus inimigos receberam o “presente” sem atentar que superestimavam o embrulho – uma humilhação com toda a pompa e perfídia que Atena, a deusa da inteligência, podia patrocinar.

O “cavalo” de Troia mostrou que uma ação guerreira eficaz prescinde de espadas. O derradeiro recurso helênico na Guerra de Troia foi valer-se de duas coisas fundamentais: sabedoria e prática. Depois de perder guerreiros singulares, entre os quais o veloz Aquiles e o descomunal Aias, e ver as muralhas troianas ainda intactas, mesmo após dez anos de árduos enfrentamentos entre heróis magníficos, os helenos finalmente privilegiaram a inteligência. O arco de Héracles, que Filoctetes empunhava, não era o bastante, porque apenas mais um instrumento de força, tampouco o vigor combatente de reis intrépidos, como Diomedes. Contando, então, com ajuda divina, eis que Odisseu, o multifacetado, impôs a astúcia e propôs a armadilha do “cavalo”.

Naquele dia, cantos de júbilo devem ter ecoado para além do Ida, na fortaleza de Príamo: às suas portas, um colosso decretava a suserania troiana. Decretava? Ninguém ali percebeu que o monumento em verdade travestia um de seus símbolos mais estimados. Foi na calada da noite, após grande festa troiana, que o garanhão desvelou-se fêmea prenhe. Então, completamente à mercê das lâminas dos aqueus, a fortaleza dardânia, protegida por bêbados e bacânticos, ruiu vertiginosamente, para nunca mais erguer-se. "Deixe seu adversário acreditar que é vitorioso, porque isso o acomoda, e a acomodação é imprudente", aconselhou Sun Tzu, oriental como os troianos.

Além de estratégia guerreira sagaz, o “cavalo” foi um instrumento de destruição da honra troiana. Aquela terra, que Homero chamou de "rica em cavalos", toda imponente, que reverenciava a si mesma sob o rugir dos cascos de seus suntuosos equinos machos, foi derrotada através de uma égua! Que ultraje! Por outro lado, que façanha dos gregos submeter seus adversários a tamanho opróbrio! Melhor que foram todos mortos. Ou quase todos. Os poucos que sobreviveram trataram de rumar para bem longe dali. Que mancha teria ficado no brio dardânio ter de registrar tal infortúnio, digno de figurar na memória das humilhações! Pelo ventre mascarado de uma égua toda grávida de heróis, os vaidosos cavaleiros troianos foram reduzidos à vergonha e ao silêncio.


             Atena deu também um recado sutil: o pretenso mundo androcêntrico dos tempos de antes, diante do poder feminino, estava desarmado. Esqueciam que, se o dia era dos homens e da guerra, a noite era delas. O que de dia era masculino, à noite podia tornar-se feminino. Troia foi um exemplo. Por isso, não sei se os gregos não reverenciaram o feminino, porque muitos mitos lhe apontam excelências. Cavalo?

2 comentários:

  1. Muito bem construído este seu texto, prévia do que, acredito, se sentirá em sua dissertação. Não pude deixar de postar um comentário, uma vez que as boas percepções devem ser reverenciadas e aplaudidas. Palmas ao maestro, Fabiano! Parabéns!

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