Artigo publicado na coluna "Universo das Letras", do jornal Gazeta do Sul, na edição de 14-15 de julho.
No oitavo canto da Odisseia, de Homero, Demódoco, aedo da corte dos feácios, narra um
dos mais célebres episódios da guerra que houvera entre gregos e troianos: o do
cavalo. Para relembrá-lo, mas com outro verniz interpretativo, convido a uma
leitura do poema "Dúvida histórica", de Marina Colasanti, publicado
em 2009, pela Record, no livro Passageira em trânsito.
Diz Montale que se estava
apertado
no ventre do Cavalo de Troia
uns contra os outros como
sardinha em lata.
E eu me pergunto se teriam
os de Ulisses
esculpido conspícuos
testículos e
um membro no seu histórico
equino
para melhor burlar os
inimigos.
Pois não era cavalo
o que deixaram
como presente fosse
frente à porta.
Sob seu duplo disfarce, era
uma égua
que à noite
na solidão silente entre
muralhas
lhes pariu uma ninhada
de assassinos.
O golpe helênico que trouxe a derrota aos
troianos foi antológico. (Devemos creditar os louros da vitória, em grande
parte, a Atena, que inspirou o embuste). A vitória grega na lendária campanha
na Ásia é um dos mais avassaladores triunfos guerreiros da literatura. Homero refere os troianos como "domadores de cavalos", um povo
que cultivava ancestralmente esses animais e os ostentava como patrimônio
singular e privilegiado. Mesmo assim, e justamente por isso, foram severamente arruinados
pelos helenos, porque o garanhão monumental que acreditavam estar recebendo
tinha, na verdade, um útero! É de se imaginar, entre os gregos, ocultos nas
praias troianas, exclamações as mais escarnecidas quando seus inimigos
receberam o “presente” sem atentar que superestimavam o embrulho – uma
humilhação com toda a pompa e perfídia que Atena, a deusa da inteligência,
podia patrocinar.
O “cavalo” de Troia mostrou que uma ação
guerreira eficaz prescinde de espadas. O derradeiro recurso helênico na Guerra
de Troia foi valer-se de duas coisas fundamentais: sabedoria e prática. Depois
de perder guerreiros singulares, entre os quais o veloz Aquiles e o descomunal
Aias, e ver as muralhas troianas ainda intactas, mesmo após dez anos de árduos enfrentamentos
entre heróis magníficos, os helenos finalmente privilegiaram a inteligência. O
arco de Héracles, que Filoctetes empunhava, não era o bastante, porque apenas
mais um instrumento de força, tampouco o vigor combatente de reis intrépidos,
como Diomedes. Contando, então, com ajuda divina, eis que Odisseu, o
multifacetado, impôs a astúcia e propôs a armadilha do “cavalo”.
Naquele dia, cantos de júbilo devem ter
ecoado para além do Ida, na fortaleza de Príamo: às suas portas, um colosso decretava
a suserania troiana. Decretava? Ninguém ali percebeu que o monumento em verdade
travestia um de seus símbolos mais estimados. Foi na calada da noite, após
grande festa troiana, que o garanhão desvelou-se fêmea prenhe. Então, completamente
à mercê das lâminas dos aqueus, a fortaleza dardânia, protegida por bêbados e
bacânticos, ruiu vertiginosamente, para nunca mais erguer-se. "Deixe seu
adversário acreditar que é vitorioso, porque isso o acomoda, e a acomodação é
imprudente", aconselhou Sun Tzu, oriental como os troianos.
Além de estratégia guerreira sagaz, o
“cavalo” foi um instrumento de destruição da honra troiana. Aquela terra, que
Homero chamou de "rica em cavalos", toda imponente, que reverenciava
a si mesma sob o rugir dos cascos de seus suntuosos equinos machos, foi derrotada
através de uma égua! Que ultraje! Por outro lado, que façanha dos gregos
submeter seus adversários a tamanho opróbrio! Melhor que foram todos mortos. Ou
quase todos. Os poucos que sobreviveram trataram de rumar para bem longe dali.
Que mancha teria ficado no brio dardânio ter de registrar tal infortúnio, digno
de figurar na memória das humilhações! Pelo ventre mascarado de uma égua toda
grávida de heróis, os vaidosos cavaleiros troianos foram reduzidos à vergonha e
ao silêncio.
Atena deu também um recado sutil: o pretenso mundo androcêntrico dos
tempos de antes, diante do poder feminino, estava desarmado. Esqueciam que, se
o dia era dos homens e da guerra, a noite era delas. O que de dia era
masculino, à noite podia tornar-se feminino. Troia foi um exemplo. Por isso,
não sei se os gregos não reverenciaram o feminino, porque muitos mitos lhe
apontam excelências. Cavalo?
Muito bem construído este seu texto, prévia do que, acredito, se sentirá em sua dissertação. Não pude deixar de postar um comentário, uma vez que as boas percepções devem ser reverenciadas e aplaudidas. Palmas ao maestro, Fabiano! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Dilsão.
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