terça-feira, 2 de março de 2010

Dançando com lobos



Eu tinha mais ou menos dez anos quando assisti pela primeira vez o filme Dança com lobos (Dances with wolves, 1990), dirigido e protagonizado por Kevin Costner, num trabalho muito bom em ambos os aspectos. Acho que essa foi a primeira experiência cinematográfica intensa que tive. Não consegui esquecer a história do tenente John Dunbar, condecorado oficial da Union que, em plena Guerra da Secessão, decide se afastar dos campos de batalha escolhendo um posto solitário na fronteira dos Estados Unidos para simplesmente ter a oportunidade de conhecê-la, do jeito que era, antes que se transfigurasse. O filme me cativou por muitas razões, e até hoje tem significado especial para mim, levando-me inclusive a ler o (péssimo) livro que lhe serviu de base, escrito por Michael Blake, autor também do roteiro. Eu diria que, em um caso raríssimo, o filme é muito superior ao livro. Há a sensação de que Blake, insatisfeito com certas passagens, que são de fato muito ruins, as tenha reformulado, como que corrigindo certos percursos de seu tosco romance. Curiosamente foi Costner quem encorajou o romance, que demorou a encontrar um editor, e não duvido que a ideia foi mais sua do que de Blake - e talvez isso explique sua péssima habilidade narrativa. De qualquer forma, surpreendentemente o filme desencadeia uma impressão completamente diferente da história.

Os dois aspectos principais que me levaram a ser cativo incondicional da produção estão relacionados à sua fotografia e à sua música. O primeiro aspecto representa uma das mais bem-sucedidas fotografias de gênero western que já presenciei no cinema. O trabalho do australiano Dean Semler, merecidamente premiado, é simplesmente exuberante, com uma leitura bastante apropriada dos espaços, das dimensões e cores dos espaços, em consonância com o que subjetivamente é apresentado através da jornada e da figura de John Dunbar. Claro que as tomadas foram explicitamente pensadas de modo a seduzir o espectador, mas a essência do que representa o andamento da imagem em Dança com lobos considero de alto nível, impossível a quem não tivesse grande habilidade e poeticidade.

O segundo aspecto considero o mais exuberante, e é sobre isso que desejo falar: a música, composta pelo veterano compositor inglês John Barry, orquestrador e mentor do famoso tema de 007 e criador de primorosos trabalhos musicais para o cinema. Curiosamente o compositor que Costner queria era Basil Poledouris, que recusou em função de que tinha acabado de finalizar um outro western: Contratado para matar (Quigley down under, 1990), dirigido pelo tenebroso cineasta australiano Simon Wincer. Costner trabalharia com Poledouris, desta vez como ator, no dramalhão Por amor (For the love of the game, 1999), dirigido por, quem diria, Sam Raimi. A recusa do compositor de origem grega para musicalizar Dança com lobos levou à feliz contratação do maestro John Barry. Não que Poledouris fosse talvez decepcionar, mas o trabalho de Barry para essa produção foi uma obra-prima, dificilmente igualável.

Quando, anos mais tarde, adquiri o CD com a trilha sonora instrumental original, praticamente devorei cada acorde. Não consigo deixar de adjetivar esse trabalho, cuja beleza musical está em uma simplicidade extraordinariamente em consonância com a evocação das imagens. Decidi falar sobre esse trabalho porque representa uma experiência que tive e que é raríssima nos dias atuais: estar diante de um filme feito com música. Grande música. As dezoito faixas destribuídas cronologicamente no CD original são todas sensacionais. Barry, mestre na arte de discernir sua música, produziu suas singelas invenções melódicas com uma instrumentação simples, econômica e, talvez por isso mesmo, poderosa. O compositor conseguiu expor todos os seus motivos musicais com extrema clareza, estabelecendo um pacto muito grande com seu ouvinte e, ao mesmo tempo, com as imagens fílmicas. Há uma presença musical sublime que parece ouvir com nós os movimentos suaves e por vezes guturais das vozes instrumentais que edificam as melodias e os arranjos. John Barry compõe com ternura. A afetividade que sua música engendra torna-se uma fonte de poder musical muito grande. Mesmo que pareça contraditório, é justamente a habilidade de Barry em manejar melodicamente uma economia de instrumentação e de contornos harmônicos que garante ao seu trabalho essa força primordial. John Barry é o compositor dos pequenos fragmentos de ternura.

Lógico que não haveria como destacar uma ou outra faixa, mas se tivesse que ilustrar sua arte com uma música específica eu escolheria "Two Socks - The wolf theme", ou "Duas Meias - O tema do lobo", de uma simplicidade monumental.

Anos atrás descobri na Internet que estava sendo comercializado um álbum estendido do filme. Não pensei duas vezes em arrematar uma unidade. O CD continha diversas faixas extras que não constavam no álbum original, e foi um prazer ouvi-las. Até hoje vez em quando me jogo na música de Dança com lobos - com a mesma saborosa empolgação da primeira vez.



Espero que ainda possam surgir trabalhos como esse, em que a música é tão importante para o filme quanto o filme é para a música.


Nenhum comentário:

Postar um comentário