Ando revendo as postagens que já publiquei aqui no blog a fim de conferir os assuntos que prometi abordar e ainda não comentei. Uma delas prometia um post sobre João Bosco, cantor, compositor e instrumentista brasileiro. Cumpro aqui, então, a promessa de falar sobre esse que, para mim, representa um dos pontos mais altos da música popular brasileira.
João Bosco, desde que o conheço, sempre foi um show que desejei ir. Em muitas oportunidades o compositor mineiro já esteve no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, mas foi ano passado, mais precisamente no dia 31 de julho, que eu e a Aninha decidimos que seria uma ocasião imperdível para conferir o show, realizado no Bourbon Country. Além da facilidade de chegar ao local, cujo trajeto já conhecíamos, o preço era extremamente em conta, quase um brinde para os admiradores do talento de João Bosco. Fomos e ficamos completamente extasiados com a perfomance do músico e com a oportunidade de vê-lo ao vivo interpretando grandes sucessos de sua carreira. Uma oportunidade única.
Conheci João Bosco não fazem muitos anos, através do disco Acústico, que o compositor realizou quando de uma apresentação para a MTV, em 1992. Até hoje considero-o um dos melhores discos que já ouvi de música popular brasileira. Extremamente recomendado a quem aprecia boa música. Boa não, excepcional, diga-se de passagem.
João Bosco, músico mineiro, começou sua carreira em 1972 com um disco de bolso comercializado junto ao Pasquim, intitulado O tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco. O brinde continha uma única faixa, interpretada por Bosco e composta em parceria com Aldir Blanc, com excepcional musicalidade, já antecipando o seu impressionante talento em composição, tanto em letra quanto em música. A parceria com Aldir Blanc já começava a tornar-se antológica, e renderia, no ano seguinte, um álbum com onze faixas inéditas, João Bosco, no qual apenas a última faixa, "Amon Rá e o cavalo de Tróia", não era em parceria com o famoso letrista carioca. Em seguida vieram Caça à raposa (1975), Galos de briga (1976), Tiro de misericórdia (1977), Linha de passe (1979), Bandalhismo (1980), Essa é a sua vida (1981), Comissão de frente (1982), 100ª apresentação (1983), Gagabirô (1984), Cabeça de nego (1986), Ai ai ai de mim (1987), Bosco (1989), Zona de fronteira (1991), Acústico (1992), Na onda que balança (1994), Dá licença meu senhor (1995), As mil e uma aldeias (1997), Benguelê (1998), Na esquina (2000), Na esquina ao vivo (2001), Malabaristas do sinal vermelho (2003), Obrigado, gente! (2006) e, o mais recente, Não vou pro céu, mas já não vivo no chão (2009). Inútil tentar destacar determinadas faixas desses discos todos, ou falar sobre as já tão amplamente comentadas "Corsário", "Jade", "´Memória da pele", "O bêbado e o equilibrista" e "Linha de passe", só para citar algumas das canções popularmente mais conhecidas. Tal proposta demandaria um estudo bastante extenso e exaustivo. Me proponho, sim, a uma visão mais geral sobre esse ícone da música popular brasileira, e uma breve nota sobre seu mais recente trabalho com inéditas.
João Bosco, embora mineiro, imigrou muito cedo para o Rio de Janeiro, e tornou-se conhecido em plena década de 70, época de ditadura militar e de censura, com as consequências políticas do medonho AI-5. A influência da sonoridade carioca é bastante evidente em sua música, especialmente nos primeiros discos, mas há sempre uma aura de musicalidade mineira, berço de grandes compositores e de grande musicalidade, tão amplamente difundida pelo famoso Clube da Esquina, do qual surgiram grandes nomes, como Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Toninho Horta e, posteriormente, Flávio Venturini. Podemos dizer que há uma mineiralidade errante na sonoridade de João Bosco, que veio ao encontro dos ritmos da Bossa Nova e do Samba-Canção cariocas - sem falar na música, digamos, romântica, como o bolero, e sem falar nas influências do jazz, já estampadas na bossa nova, e do blues, mas principalmente do primeiro. A grande qualidade de João Bosco advém talvez de transitar em diferentes gêneros e propor, através dessa dança, um swing e/ou um balanço com rara lucidez - por vezes até com requintes clássicos -, concebendo uma riqueza de sonoridades quase sem igual na musicalidade popular brasileira, com especial ênfase nos arranjos de cordas e de percussão. Como se não bastasse, há as letras, muitas delas escritas em parceria com o grande Aldir Blanc, cuja poética, com ou sem relação contextual, deflagram algumas das mais belas e cativantes imagens da poesia da canção brasileira. Embora a genial parceria com Blanc, João Bosco, em vários trabalhos, demonstrou excepcional talento também para escrever letras, algumas até antológicas. Todos esses elementos juntos, ou seja, a música, a letra e a instrumentalização reunidas, compõem um trabalho musical de excepcional qualidade no cenário da MPB. Aliás, é digna de nota a habilidade de João Bosco em compor, muitas vezes sozinho, letras, melodias e arranjos instrumentais, numa reunião de elementos cuja beleza configura uma qualidade não tão comum na MPB. Geralmente quando músicos têm habilidade nesses três aspectos, algum deles acaba sobressaindo aos demais, o que não acontece com João Bosco. O compositor mineiro destaca-se, afinal, justamente pela harmonia dessa tríade da arte da música-canção: a poética da letra, da invenção melódica e do arranjo instrumental. Talento impressionante.
Há também uma presença refinada de uma feminilidade em suas letras. Se Chico Buarque é o cantor do feminino, João Bosco é o intérprete da feminilidade (aqui talvez com uma disposição muito próxima da de Gonzaguinha), que salta tanto de suas imagens poéticas quanto de sua gestualidade vocal. Esse aliás é um outro aspecto que soma-se à qualidade de suas músicas: Bosco é também um grande cantor, e é muito difícil para um outro intérprete conseguir evocar as imagens de suas letras com uma força tão orgânica e límpida como a de seu criador. Resumindo: é bom ouvir João Bosco em todos os sentidos, o que confere à sua música uma experienciação muito enriquecida - sem falar em suas peculiares vocalizações melódicas, marca intransferível de grande parte de suas interpretações, sobretudo as realizadas ao vivo. A música de João Bosco é tão rica - e o compositor sempre costuma ir além da forma, principalmente ao vivo - que mesmo ouvindo-o acompanhado tão somente de um violão imergimos em uma experiência de musicalidade com excepcional sensibilidade, lucidez musical e qualidade múltipla. A forma da música de João Bosco é, aliás, elaborada de maneira que, já em seu nascedouro, possua uma maleabilidade rítmica impressionante, habilmente configurada pelo músico em sua maneira peculiar de vocalização, sobretudo das vogais, e, muitas vezes, na (re)disposição dos arranjos quando nas interpretações fora de estúdio. Tudo é sempre muito musical em João Bosco, e o resultado só pode ser uma plenitude.
Em seu mais recente trabalho, Não vou pro céu, mas já não vivo no chão, nos deparamos com um músico consciente de uma maturidade musical com pleno vigor. O disco é, sem dúvidas, um dos melhores lançados no cenário da MPB no ano passado - talvez o melhor. Desde 2003 sem lançar um trabalho com canções inéditas, ou seja, há cerca de seis anos - fato raro em sua discografia -, João Bosco fez um passeio com os estilos que o inspiram a compor. Há uma musicalidade excepcional em faixas como "Navalha", "Desnortes", "Tanajura", "Jimbo no jazz", "Ingenuidade" e "Sonho de caramujo", para não dizer todas. Incrível o que João Bosco fez nesse disco, uma espécie de reunião rítmica sofisticada de muito daquilo que ele já mostrou em seus mais de trinta anos de carreira. Depois de ouvir entendemos o porquê de um espaço de tempo mais longo que o habitual entre um disco de inéditas e outro, dado o trabalho de produção e o cuidado com os detalhes que parecem ter demandado as músicas. Novamente temos aqui um conjunto de elementos que reverberam em uníssono, proporcionando uma experienciação musical de grande amplitude, sem falar no canto de Bosco, que em nada parece ter sido afetado pelos anos. Dou aqui uma menção especial para as faixas "Desnortes", cujo arranjo em muito lembra o arrojo de um Guinga, e "Tanajura", com um extraordinário arranjo de cordas e de percussão, tecido harmoniosamente em conjunção com a letra. As duas composições apresentam, ainda, uma belíssima poeticidade no que concerne às letras e ao canto de Bosco. Uma obra-prima, arrisco-me a dizer. Resta salientar, por último, o retorno da parceria com Aldir Blanc, que talvez tenha ocorrido através de um resgate de letras criadas por ambos no passado e que tenham, por algum motivo, permanecido sem serem gravadas.
João Bosco está, por essas e outras razões, a meu ver, entre os maiores músicos da história de nosso país. E o mais legal de tudo é que o compositor parece exercer seus talentos com a mais despojada alegria e prazer, como se a música fosse - e é -, para ele, um perfeito prolongamento de sua existência.
Acabaram-se os textos?
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Oi, Jorge. Não, não acabaram. Ultimamente meu pensamento precisa se ocupar basicamente só com a monografia, na medida em que estou elaborando a estrutura do trabalho e definindo pressupostos teóricos. É um primeiro passo para o qual sempre procuro imersão, por isso não postei mais nada. Mas tenho muitas postagens já engatilhadas, algumas até já escritas. Prometo fazer isso assim que puder. Só não posso dizer quando, mas não irá demorar. Talvez amanhã.
ResponderExcluirAh, e obrigado pelo interesse! E desculpe pela espera. Qualquer coisa, escreva, fique sempre à vontade.
Ah, Fabiano, concordo plenamente com você. João Bosco sempre foi o meu preferido na MPB. Ele é um ponto de luz que ressalta na MPB até hoje, como sempre ressaltou.
ResponderExcluirJoão Bosco, pra mim, é o maior compositor que já vi surgir no Brasil. Sou paraibano e muito lamento que aqui na Paraíba não deem valor a expoentes máximos da MPB como João Bosco. Nunca houve um show do João aqui na Paraíba, e a maior parte das pessoas que aqui conheço nem sabem quem ele é, só se lembram dele quando eu cito "O Bêbado e A Equilibrista" ou "Papel Machê", mas não lembram nunca o nome dele de primeira vez. Acho um desserviço não saberem quem é João Bosco, pois a MPB é um patrimônio de todos os brasileiros, e nossa boa música já foi toda lixiviada pelos lixos musicais que a mídia lança hoje a três por quarto.
João Bosco é um mestre, e ainda bem que ele ainda não é velho e tem muito tempo de estrada ainda. Precisamos muito dele pra continuar dando à nossa MPB a dignidade que ela sempre teve, mas que vive hoje sendo enxovalhada pelos Xu xu xu xá xá xá, Anitta, Luan Santana e gangue ilimitada.
Como bem disse o grande poeta Aldir Blanc, parceiro primeiro de João Bosco, grande cronista e ativista social: o Brazil tá matando o Brasil!