quinta-feira, 6 de maio de 2010

Aurora, de Murnau: movimento cíclico de ascensão à felicidade*

Ufa. Depois de algumas semanas volto a publicar um texto. Como prometido, segue um estudo sobre o filme Aurora, do cineasta alemão F. W. Murnau. Só lembrando que o texto contém spoilers, então, desde já me declaro inocente!

Alemanha, 1926. Menos de dez anos após o término da Primeira Guerra Mundial, e três anos antes da Grande Depressão que abalaria a economia de diversos países e mudaria o cenário geopolítico do mundo, o povo alemão vivia um período especialmente inquietante, que, afinal, mais de uma década depois, chegaria a seu ápice com o início da Segunda Guerra Mundial e a derradeira insurgência do Partido Nazista no sentido de expandir um ideal de regime totalitarista em resposta à degradação interna e externa que a Alemanha vinha sofrendo há anos. Antes que esse cenário angustiante finalmente tomasse as últimas consequências, mas já envolvido pelos ideais da malfadada República de Weimar, um jovem artista alemão, cineasta, deixava o seu país para aventurar-se em território estrangeiro a convite de um promissor estúdio americano.


Friedrich Wilhelm Murnau, ou, F. W. Murnau, nascido em 1888, na Alemanha, começou sua carreira em 1919, com O garoto vestido de azul (Der knabe in blau, 1919), ano em que o cinema de seu país realizava uma primeira incursão a partir da estética do expressionismo, com O gabinete do Dr. Caligari (Das cabinet des Dr. Caligari, 1920), de Robert Wiene. Incorporando a seus ideais estéticos valores artísticos oriundos sobremaneira das artes plásticas, de Vincent Van Gogh a Edvard Munch, entre outros, os expressionistas do cinema alemão utilizaram a perspectiva subjetivista de seus predecessores para se referirem a uma realidade contextual completamente desestabilizada, social e economicamente, que compunha o quadro alemão após a Primeira Guerra, finda em 1918, aliando àquela as proposições psicanalíticas de Sigmund Freud e a filosofia de Friedrich Nietzsche, que deflagrava uma contundente crítica cultural ao moralismo e ao idealismo utópico.


Murnau, cineasta surgido em pleno nascedouro do expressionismo cinematográfico, não poderia deixar de aderir ao movimento, realizando, em 1922, talvez a obra mais celebrada dessa estética: Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922). Embora tenham sido recebidos com desdém pelo público, à época, é inegável o mérito dos cineastas expressionistas alemães na representação vanguardista do momento histórico perturbador que vários países enfrentavam, em especial a Alemanha, de extrema desilusão social. A tradução desse contexto em imagens fílmicas proporcionou o desenvolvimento de uma estética bastante particular no meio cinematográfico alemão e mundial, em que a (in)coerência dos sentidos, anuviada por aspectos ocultos do inconsciente, vinha de encontro ao racionalismo para propor a composição de uma humanidade sombria e, muitas vezes, bizarra. É a partir dessa perspectiva que Murnau, em 1922, compôs o seu conde Orlok, imortalizado pela excepcional performance de Max Schrek em Nosferatu.


Em 1926 o cineasta atendeu ao convite de um estúdio norte-americano para trabalhar no Novo Mundo. Realizaria, então, quatro filmes, vindo a falecer em 1931, na Califórnia, em um acidente de carro, aos 42 anos de idade. Seu primeiro trabalho em solo americano chegaria aos cinemas logo no ano seguinte a seu desembarque, em 1927: Aurora (Sunrise, a song of two humans, 1927), obra que receberia três premiações na primeira edição do Oscar, em 1929.


Aurora, diferentemente de Nosferatu, já representa um passo adiante ao expressionismo em termos de totalidade estética. Embora atendesse à iniciativa que os americanos tiveram de importar aquele esteticismo cinematográfico, trazendo, para tanto, realizadores íntimos da ideia, entre eles Murnau, o filme suplanta o propósito da chegada de seu criador, elaborando questões existenciais sob uma série de perspectivas que não só esteticamente expressionistas. Os eventos e elementos narrativos fílmicos, ciclicamente dramatizados através de um discorrer linear de ações, espaços e do tempo, alargam uma primeira proposta expressionista e impõem, neste caso, sobre o racionalismo, um viés social bucólico e psicanalítico renovador sobre aspectos do humano considerados artificiais e/ou tenebrosos, os quais o expressionismo geralmente buscava evocar de maneira sombria e quase sempre sem qualquer esperança. Aurora avança no sentido de engendrar um efeito catártico renovador a este inconsciente/consciente de distorção, manifestado a ponto de projetar-se no espaço - quando não psicossomático.

Em Aurora aspectos existenciais e circunstanciais são dicotomicamente engendrados pelas oposições cidade-campo, paixão-amor, realidade-utopia, bem como por diversas outras problematizações, que surgem como que querendo sacralizar certo aspecto em detrimento do outro, ou apenas amplificar certa percepção de mundo, com esperança, propondo, em primeiro plano, a possibilidade de transformação em resposta à distorção.


Na história, elaborada em cinema mudo, Homem (George O’Brien) e Mulher (Janet Gaynor, ganhadora do Oscar e provavelmente a primeira estrela do cinema americano) vivem no campo, com seu filho. Sua comunhão seria perfeita, dada a lealdade, dedicação e afeto da Mulher, não fosse o caso extraconjugal que o Homem mantém com a Mulher da Cidade (Margaret Livingston) e que o faz indiferente e deselegante à esposa. Entusiasmado com a ideia de construir nova família na tão prestigiada cidade e com a mulher que lhe oportuniza o interdito amoroso, o Homem, às escondidas, a partir da sugestão da amante, arquiteta um plano para assassinar sua esposa e, assim, abandonar uma existência até então depreciada. Entretanto, uma reviravolta de enredo acontecerá, proporcionando o desenrolar de uma série de eventos inesperados em uma obra de um típico realizador expressionista, como a desistência do assassinato, a reconciliação amorosa, a reiteração da promessa conjugal e o desenvolvimento de uma plenitude de felicidade e de sorte de destino para o bucólico casal. Em outras palavras, um movimento dramático aristotelicamente cíclico ocorre determinando uma valorização à existência e uma ironia às paixões – que não deixa de configurar-se como uma ironia ambígua, que atinge tanto aquilo que o expressionismo declarava-se contrário quanto o próprio desenvolvimento típico dos mecanismos imagéticos dessa contrariedade.

A valorização à existência se dá, de uma maneira geral, pelo encaminhamento do casal à plena concretização do quadro de felicidade que lhe é atribuído quando da infância. Esse encaminhamento ocorre, num primeiro momento, individualmente, pela ascensão subjetiva do Homem a um estado de percepção qualitativamente revigorado acerca de sua família, de seu lar e, em especial, de sua Mulher. Num segundo momento, ocorre a partir de um acolhimento amoroso e coletiviza-se: a Mulher, mesmo aturdida com a percepção da intenção malévola do Homem, que ensaiou matá-la, o aceita novamente. Os dois então (re)viverão um momento de primeira felicidade matrimonial, agora sob a égide da plenitude, possibilitado pela reconquista de sentidos humanos essenciais por parte dele, justamente no cenário que fomentara utopicamente a tragédia: a cidade. Todavia, Murnau faz questão de filmar os espaços urbanos que circundarão o casal com certa suplantação do emblema amoroso redescoberto e com uma singela configuração cênica chaplinesca, como que transformando sua atmosfera, pré-concebida como vil, em possibilidade de extensão e acolhimento da afetividade – como na sequência que envolve a perseguição do Homem a um porco, recebido como prêmio em um parque de diversões, ou a impressionante cena do beijo no centro de uma movimentada rua.


A ironia é engendrada sobretudo pela cena do retorno do casal ao campo, de barco. Em meio a uma tempestade, a Mulher é lançada para fora da embarcação e aparentemente é concebido o seu falecimento. Entretanto, o Homem, cujo plano maléfico no primeiro estágio do enredo tinha sido provocar um acidente de barco e sobreviver a custo de cones de palha engenhosamente articulados para lhe servirem de boias, enquanto a Mulher, sem salvamento, afogar-se-ia, sequer imaginava que a engenhosidade serviria para, naquele momento, evitar a morte de sua esposa. Com isso o discurso de Murnau regula ironicamente o artificialismo anterior, advindo da utopia da civilização urbana, num sentido renovado e paradoxalmente reiterativo dessa plenitude existencial amorosa – porque espacial também, ou seja, não só restrita ao âmbito de anima. A partir do redescobrimento da felicidade conjugal, acolhido também pela cidade, essa plenitude ultrapassa uma disposição exclusivamente de caráter bucólico, sui generis, tornando-se universal, como queria a epígrafe do filme e como sugeria a ideia de não nomear as personagens no decorrer da narrativa fílmica.


Para representar o ciclo dramático de sua obra, que envolve aspectos da psiquê de suas personagens, Murnau elaborou imagens muitas vezes de intenso vigor lírico - disposição comum à estética expressionista -, utilizando, não raro, elementos simbólicos em diversos momentos da história para uma ênfase às proposições de um enredo vinculado à ideia de valorização dos impulsos inconscientes do humano. Eis porque a obra, mesmo realizada em cinema mudo, é eloquente: suas imagens são elas próprias linguagem plurissignificativa. O espaço, os corpos e os elementos que envolvem o imagético são vozes muitas vezes mais transparentes e significativas que centenas de produções faladas, constituindo, assim, um conjunto de elementos que tornam Aurora uma realização que, mesmo feita em 1927, é incluída por críticos de cinema dos mais diferentes lugares do mundo em suas listas de obras-primas legadas à sétima arte.

Resta-nos, por fim, a imagem final, emblema de toda a história: a aurora, ou, o amanhecer: o redescobrimento da existência plena entre o Homem e a Mulher – e do cinema expressionista, em sua própria aurora, por Murnau.


* Este artigo foi elaborado para a disciplina de Seminários de cinema, ministrada pelo Prof. Dr. Josmar Reyes, na UNISC. Em linhas gerais, o filme é simplesmente excepcional, em todos os seus sentidos.

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