segunda-feira, 31 de maio de 2010

Gonzaguinha: imagem e feminilidade da vida



Luiz Gonzaga Júnior, ou, Gonzaguinha, é, para muitos, simplesmente, o herdeiro do renomado cantor e compositor nordestino Luiz Gonzaga, criador de expressivos ritmos da musicalidade brasileira, especialmente o baião, e um dos mais representativos músicos do nordestão brasileiro. Entretanto, há uma diferença muito grande entre a carreira musical do pai e do filho, e mesmo quando Gonzaguinha cantava "Asa branca", o sucesso talvez mais popularmente conhecido de seu pai, quase sempre o fazia através de um arranjo inovador.


Nascido em 1945, no Rio de Janeiro, Gonzaguinha engrenou, de fato, uma carreira musical, a partir de 1973, em pleno período de maior repressão da ditadura militar. Antes, porém, já havia sinalizado talento quando participou do M.A.U., o Movimento Artístico Universitário, ao lado de nomes como Ivan Lins e Aldir Blanc. Em 73, ao inscrever a canção "Comportamento geral" em um concurso de um programa de rádio, contagiou os ouvintes. Seu primeiro disco, lançado naquele ano, que estava encalhado nas lojas, esgotou, e o fulminante sucesso rendeu, da Rádio Tamoio, um convite para a gravação de um segundo disco, com o mesmo nome do primeiro, Luiz Gonzaga Júnior, realizado em 74. Desde então seus trabalhos obtiveram enorme repercussão, embora tenha sido indevidamente reconhecido, num primeiro momento, como o "compositor do rancor".



A alcunha deve-se, provavelmente, à experiência que Gonzaguinha teve no morro de São Carlos, ou Estácio, no Rio de Janeiro, onde viveu parte de sua infância. Órfão de mãe aos dois anos de idade, Gonzaguinha foi criado pelos padrinhos, Dina e Xavier, já que Gonzagão, o pai, permanecia quase o ano inteiro viajando e cumprindo com sua ininterrupta agenda de shows - até em Santa Cruz do Sul o músico se apresentou. Foi através do padrinho, baiano, que o menino afeiçoou-se ao violão. A experiência na periferia Gonzaguinha transformou em várias letras, entre elas "Com a perna no mundo", estando em contato com o que se convencionou chamar de "submundo" e despertando, a partir disso, uma consciência social eventualmente de caráter mais contundente.

"Acreditava na vida
Na alegria de ser
Nas coisas do coração
Nas mãos um muito fazer
Sentava bem lá no alto
Pivete olhando a cidade
Sentindo o cheiro do asfalto
Desceu por necessidade
Ô Dina
Teu menino desceu o São Carlos
Pegou um sonho e partiu
Pensava que era um guerreiro
Com terras e gentes a conquistar
Havia um fogo em seus olhos
Um fogo de não se apagar

Diz lá pra Dina que eu volto
Que seu guri não fugiu
Só quis saber como é
Qual é
Perna no mundo sumiu

E hoje
Depois de tantas batalhas
A lama dos sapatos
É a medalha
Que ele tem pra mostrar
Passado
É um pé no chão e um sabiá
Presente
É a porta aberta
E futuro é o que virá
Mas, e daí

Ô Ô E E Á
O moleque acabou de chegar
Ô Ô E E Á
Nessa cama é que eu quero sonhar

Ô Ô E E Á
Amanhã boto a perna no mundo
Ô Ô E E Á
É que o mundo é que é o meu lugar".



Ou "Fotografia", sobre o lugar em que cresceu.

"Veja a cara dele sorrindo
veja a cara dele sorrindo atrás do muro
Agora ele pode sorrir pois o medo passou
Já está bem mais calmo seu coração
Ao invés do barulho do medo no ouvido
Ele ouve o ruído do vidro das bolas de gude
Agora ele pode brincar o jogo das bolas de gude
menino de novo
Veja na cara do outro, a tensão
Na cara do outro a atenção no que vem
Aquele olho de lado prestando atenção, vem alguém
O exterminador, o torturador
O anjo d'amor, o anjo da dor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô
Veja a cara daquele mais ruim
A cara de espanto daquele mais um com o
trinta e oito na mão
Veja a fumaça saindo do cano
O corpo de um outro menino caído no chão
Veja o gude largado no chão
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô".



Entretanto, muito mais que compositor do rancor, Gonzaguinha é o cantor da celebração. Sua poesia, simples mas não simplória, é quase uma reverência a um impulso de vida que pode renovar as agruras existenciais através de gestos de gentileza e, por isso, de libertação, bem como engendra um olhar que, amadurecido, volta-se consternado ao passado e, já repleto da chamada "sabedoria de rua", quer, de certa forma, estabelecer um convite à renovação. Na verdade, seu amor à vida não tem espaço para a manifestação do rancor, mas, mais sublime, quer, numa disposição irrefreável, subliminar o que está negativizadamente à volta, mesmo que, para tanto, seja necessário desvelar o que vai de encontro a essa disposição, quase que em um movimento catártico. Sua maneira de se posicionar diante dos fatos é sempre enaltecida pelo carinho e pela solidariedade. Suas imagens, mesmo quando evocam eventos direta ou indiretamente trágicos, sempre estão resguardadas por elementos próprios de um imaginário infantil e/ou de uma beleza singela, impedindo que confluam a uma total negativização do instante, mas, ao contrário, permitindo que sejam, de alguma forma, suplantadas no sentido de serem aderidas à experiência existencial como algo passível de ser positivizado - desde que haja olhar para tanto.



Em 29 de abril de 1991 o cantor e compositor perdeu tragicamente a vida, aos 45 anos, em um acidente de trânsito, no Paraná. Um caminhão cortou a frente de seu Monza quando o músico dirigia-se para Foz do Iguaçu, onde tomaria um avião para Florianópolis, Santa Catarina, e realizaria seis shows. Lamentável perda. Uma vida, em pleno vigor e sucesso, ceifada drasticamente a caminho de realizar aquilo a que com mais vibração se dispunha: compartilhar o amor à vida através da canção.



Gonzaguinha tinha algo não muito comum na música brasileira: o canto completamente embevecido por um clamor amoroso de anima. E talvez não exista representante maior daquilo que Luiz Tatit, teórico brasileiro, chama de "persuasão passional", ou seja, a maneira de entoação das vogais, expandindo-as. Além disso, Gonzaguinha soube como poucos expressar uma disposição feminina de entrega, oposta, mas não em conflito, ao masculino, geralmente dominador. O verbo de sua música, sem dúvidas, é viver, e as imagens dessa vivenciação erguem-se no sentido de expressar júbilo para com essa disposição, seja através do corpo ou da alma. Há quem diga que ele teria sido um dos primeiros compositores a dar ao feminino uma voz de potencialidade tão significativa quando o masculino. Na verdade, ambos completam-se, e a afetividade que deflagam é sempre terna. A essência estará no elo, não no indivíduo - embora dependa do indivíduo.



Seus vinte discos expressam esta disposição de viver incondicionalmente celebrando o gesto e o caráter. Sua moral não é lição, mas experiência. Muito embora tenhamos perdido precocemente sua poderosa maneira de (en)cantar as coisas simples e amáveis da vida, Gonzaguinha certamente terá para sempre um lugar especial na história da música àqueles que, como disse, deixam a vida entrar, calorosamente, ou que, em parando de temer, chorar e sofrer, sorriem, se dão e, por isso, se perdem e se acham, e encontram tudo aquilo que é viver - a vida -, como se fosse o sol.

"Por um segundo

Por um segundo num sorriso teu
Fez-se festa infinita em minha vida
E a estrada longa inteira
Num giro da mente eu vi

Por um segundo em um beijo teu
Tive todo o universo em meu corpo
E eu fui dono das estrelas
Guardei no peito pra dois

Manso riacho
Nos levando
Abraço calmo e quente
Corrente aumentando
Mergulha sem fim

Por um segundo, um segundo só
Explodiu o nosso amor por sobre o mundo
E nós fomos só alegria
Depois o silêncio
E então morrer".


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